quinta-feira, 13 de setembro de 2018

O ser em Parmênides (Eleatas) e o pensar em Descartes (Cartesianos). Tese e antítese de uma relação.

A filosofia caracteriza-se, falando muito sumariamente, por esta relação entre o ser (ou to on) e o espírito (nous), e esta tensão entre o que é e o que pensa marca toda a trajetória filosófica. A busca por compreender o todo, a partir da razão, sem outro objetivo além da própria compreensão, pode descrever toda esta epopeia riquíssima que é a contemplação, o pensar e mesmo o fazer filosófico. Esta tensão dialética pode ser acompanhada sob vários aspectos, mas discutiremos aqui a relação antitética, dialética mesmo, entre: 1) A filosofia que parte do ser, e procura conhecê-lo e refletir sobre ele – cujo autor emblemático é Parmênides de Eleia e seus discípulos, e 2) Aquela filosofia que tem como ponto de partida o pensar, ou seja, optar pelo espírito humano como ponto de partida para a própria reflexão. O autor emblemático aqui é Descartes. O ser das coisas representam, em Parmênides, a primeira interpelação ao espírito humano. Os fenômenos que se apresentam a ele parecem provir de coisas que existem. No entanto, obviamente, o próprio fato de algo existir é algo que não pode ser diretamente conhecido pelos sentidos, mas apenas deduzido pela razão a partir dos fenômenos sensíveis. De fato, os eleatas iniciam sua reflexão pelas coisas. Elas antecedem, de certa forma, ao filósofo e seu espírito, e ele se depara com elas. É neste sentido que a filosofia antiga pode se descrever como uma reflexão iniciada pelo espanto, de perceber-se no mundo, de ser interpelado pelas coisas que precedem ao filósofo e na busca do sentido (logos) destas próprias coisas. Mas não havia como estabelecer esta existência concreta e real das coisas a partir de uma abordagem estritamente empírica. A existência concreta de uma coisa é um dado que antecede a ciência. Assim, Parmênides dissociou o ser do aparecer. E remeteu todo o aparecer, todo o mundo dos fenômenos, ao reino do não-ser, guardando sua capacidade contemplativa para o reino do ser, que lhe parecia muito mais real do que o reino dos fenômenos. O ser, então, embora não se dê aos sentidos, é para ele, de certo modo, mais real, mais concreto, do que todo o mundo fenomenológico que nos aparece. E na busca daquilo que é fundamento, arché, do cosmos, da physis, Parmênides descreve o ser como estático, imóvel, igual a si mesmo, uniforme e como que esférico. Iniciando-se radicalmente na busca do ser, Parmênides e seus discípulos, na busca desta objetividade que reificou o espírito, geraram aporias que impediram a continuidade do caminho filosófico no sentido que apontaram – a aporia clássica deste sistema, que continua desafiando os filósofos até hoje, é a célebre corrida entre Aquiles e a tartaruga, em que Zenão, discípulo de Parmênides, tenta reduzir ao absurdo a tentativa de harmonizar os fenômenos que se dão empiricamente ao espírito humano com a razão que busca o puro ser como fundamento do real. Paralisado o caminho filosófico neste desvão que enrijece o ser no seu confronto com o espírito, avaliemos agora um outro filósofo que tem um ponto de partida diametralmente oposto – uma verdadeira antítese ao velho Parmênides. Refiro-me a René Descartes e o seu célebre “cogito ergo sum” (penso, logo existo). Descartes luta para vencer o ceticismo com a chamada intuição cartesiana: “penso, logo existo”. O problema da existência, portanto, que tinha, em Parmênides, sua raiz na interpelação que as coisas faziam ao espírito humano, fica ancorada agora no pensamento humano. Notemos que o “cogito” de Descartes não tem o significado da constatação de um sinal, algo como “se penso, logo não posso não existir”. Trata-se de uma declaração muito mais radical: declarar que o pensamento, e na dimensão individual é o único fundamento válido para a afirmação do próprio existir. E de que do meu pensamento, e só dele, posso deduzir todas as outras coisas, inclusive a existência de Deus, e em consequência, do mundo. Aqui, o espírito tem precedência total sobre o ser. Esta posição traz suas próprias aporias, entre elas a impossibilidade de explicar a relação entre este ser que pensa, e que se descreve como puro espírito desprovido de extensão, e um mundo que se apresenta como pura geometria, pura extensão dominável. Paradoxalmente, as aporias de um racionalismo radical do ser, como o de Parmênides, que se buscava eliminar, ressurgem aqui como aporias de um racionalismo radical do espírito, em Descartes. Talvez a síntese aristotélica entre Parmênides e Heráclito, que Aristóteles empreendeu na antiguidade pela introdução das noções de ato e potência, seja um paradigma interessante para a nova síntese que se faz necessária hoje. Esta nova síntese, que não vai poder descurar também do empirismo e da fenomenologia, pode trazer tantos frutos, hoje, para a humanidade, quanto o aristotelismo trouxe, naqueles tempos.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2017

Um projeto paralelo

Caros amigos, Estou desenvolvendo um projeto paralelo, que é ler a Suma teológica e comentar artigo por artigo, de forma livre e sem pretensões eruditas ou acadêmicas. isto me fez começar um novo blog, chamado "Ler a Suma Teológica : um leigo lê a Suma Teológica num debate livre com Tomás de Aquino". está aqui: https://lerasumateologica.wordpress.com/ Por enquanto publicarei preferencialmente ali. paz e bem a todos. Paulo Jacobina

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Vamos começar a ler a Suma Teológica de São Tomás, desde o começo e sem prazo para acabar.

Queridos amigos, Voltamos a publicar aqui, e nosso plano é ler, aos poucos, a Suma Teológica´de Tomás de Aquino. Ler a suma como um leigo curioso, que se aproxima de um tesouro complexo, encoberto e difícil de explorar. Não somos clérigos, nem especialistas, apenas leitores ousados, com coragem para, nas horas vagas, avançar nesta leitura tão densa e enriquecedora. A Suma Teológica de Tomás de Aquino foi escrita por volta dos anos 1270. Tem, portanto, mais de 700 anos. É de compreensão dificílima para um leitor de hoje, ainda mais quando não tem especialização na área. Tradicionalmente, ela era lida em latim, nos Seminários católicos, por aqueles que estavam em formação para o sacerdócio ordenado - para ser padre. Mas, segundo se sabe, hoje ela é pouco lida até nesses ambientes; no entanto, facilita muito o fato de existirem boas traduções em português. Embora, para a leitura de um leigo, a tradução em espanhol, disponível gratuitamente para download em PDF na internet, tenha sido concebida exatamente para a leitura dos não especialistas. Recentemente, uma editora brasileira lançou uma edição em cinco volumes em português, sem comentários e notas de rodapé, da tradução clássica de Alexandre Correa de Barros, que também existe para acesso gratuito na internet. Existe uma outra tradução em português, mais nova, da Editora Loyola, mas eu não gostei muito - ela tem alguns erros de revisão e de indicações em nota de rodapé que parecem tornar mais confusa a Suma para não especialistas. Sabemos que a Suma é composta de três partes, a parte "primeira", a parte "segunda" (que, por seu turno está dividida em "primeira parte da segunda parte" e "segunda parte da segunda parte", e a parte terceira, que São Tomás de Aquino deixou incompleta, e foi completada por discípulos seus). para começar a ler a Suma, vamos começar pelo prólogo à parte primeira. Ali, Tomás de Aquino se apresenta como um "doutor da verdade católica". Ele diz: "O doutor da verdade católica tem por missão não somente ampliar e aprofundar os conhecimentos dos iniciados, mas também ensinar e colocar as bases aos que estão começando [incipientes]", e cita a Bíblia: 1Cor 3, 1-2: "Como a criancinhas em Cristo, eu vos dei por alimento leite a beber, e não carne para mastigar". Algumas coisas para meditar aqui, portanto: O título de ""doutor", que São Tomás usa, não envolve falta de modéstia, nem representa uma espécie de "cartada vaidosa" acadêmica: "doutor da verdade católica", para São Tomás, é um servidor, em dois aspectos: serve à verdade católica que recebe, e da qual deve ser um fiel depositário, e serve aos discípulos que deve formar. É com a humildade de um servidor, portanto, que São Tomás se apresenta, e não com a arrogância de um, digamos, "dotô" contemporâneo, desses que estamos acostumados a ver em universidades, tribunais e consultórios - e que, em geral, são tão mais posudos quanto menos competentes... Quanto aos seus interlocutores, São Tomás apresenta dois tipos: os iniciados, que estão buscando ampliar seus conhecimentos, e os principiantes - que é exatamente o meu caso. Ele diz, portanto, que está se dirigindo aqui aos iniciantes, não aos já iniciados. O que é surpreendente, porque qualquer um que já tenha avançado um pouco nas páginas da Suma saberá quão complexas elas são para um iniciante. Eu fico a imaginar que os iniciantes, ou principiantes, nos tempos de São Tomás, eram muito mais preparados do que os iniciantes de hoje em dia, como eu... Quanto ao conteúdo, São Tomás diz que é sua intenção oferecer, na Suma, "tudo o que diz respeito à fé cristã", e o seu método será fazê-lo "do modo mais adequado possível para que possa ser assimilado pelos que estão começando". O próprio São Tomás nota que os iniciantes do seu tempo tinham muita dificuldade de compreender a doutrina cristã, e por causa de algumas dificuldades, digamos, didáticas: "algumas vezes", ele diz, o estudo é difícil para o iniciante porque o material de estudo é ruim "pelo número excessivo de questões, artigos e argumentos inúteis", quer dizer, pela falta de objetividade na matéria, que dificulta tudo para o estudante inicial. Ele também critica o "método ruim" do material à disposição dos incipientes, porque as chaves desse saber são entregues não segundo a exigência interna da própria disciplina, mas segundo a ordem de algum livro didático que o professor está acompanhando, ou os debates que vão surgindo na exposição. Por fim, ele critica o material existente para os iniciantes porque o enredam em "constantes repetições" e divagações que causam confusão e aborrecimento nos novatos. Assim, São Tomás invoca a proteção e a ajuda de Deus para "remediar estes inconvenientes", e apresentar de forma bem breve e clara (sempre que o problema a tratar o permitir) tudo o que se refere à doutrina sagrada. Só me resta, depois de perceber que eu estou muuuito abaixo do nível daqueles que São Tomás chama de "párvulos", "incipientes" e "noviços" no seu texto, pedir também a proteção de Deus para enfrentar esta obra espetacular que se chama "Suma Teológica", mas que na verdade é um compêndio de filosofia, cosmologia, antropologia, psicologia, teologia e lógica (não necessariamente nesta ordem), entre outras coisas, e que alguém já chamou de "catedral gótica de conhecimento humano". Seguirei o ritmo que Deus permitir. Paz e bem! o projeto está sendo desenvolvido nesse endereço: https://lerasumateologica.wordpress.com/

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Queridos amigos e leitores, Como vocês podem perceber, estamos há muito tempo sem postagens novas nesta página. É que nossos textos estão sendo publicados pelo portal Zenit, e podem ser visitados no seguinte endereço: https://pt.zenit.org/articles/author/paulovasconcelos-jacobina/... Lá estão os textos que escrevi desde 2012 até hoje... Houve também, além do próprio livro "Cartas a Probo", ed. Comdeus (http://www.livrariacomdeus.com.br/cartas-a-probo-p145), a publicação de outros livros: O livro "Deus não é um Delírio" (http://www.amazon.com.br/Deus-n%C3%A3o-del%C3%ADrio-Analogia-Harmonia-ebook/dp/B00Q4T6BUO/ref=sr_1_1?ie=UTF8&qid=1456139890&sr=8-1&keywords=deus+n%C3%A3o+%C3%A9+um+del%C3%ADrio+paulo+jacobina).. e o livro "Estado Laico, Povo Religioso", pela Editora LTr (http://www.ltreditora.com.br/estado-laico-povo-religioso.html) O email desta página continua ativo, para quem quiser falar comigo... Paz e bem a todos! Paulo Vasconcelos Jacobina

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Os crimes sexuais no projeto de código penal

Tratando da relação entre a estabilidade das leis e a democracia, Jean Jacques Rousseau alertava os habitantes da República de Genebra sobre a necessidade de que a legislação ficasse protegida dos sabores das modas, das “vanguardas de pensamento” que hoje defendem uma inovação, amanhã outra, e que têm a novidade como um fim em si mesma. Dizia Rousseau no seu “Discurso sobre a Origem da Desigualdade”, criticando os “novidadeiros legislativos”: “[...] é sobretudo a grande antiguidade das leis que as torna santas e veneráveis, pois que o povo logo despreza as que vê mudar todos os dias e, pelo hábito de negligenciar os antigos usos, sob o pretexto de fazer melhores, são introduzidos muitas vezes grandes males para corrigir menores.” Num regime verdadeiramente democrático, portanto, as mudanças legislativas existem para corrigir aquelas situações em que as leis já não mais atendem aos valores e anseios do povo. Toda cultura é dinâmica, e é muito justo e legítimo que aquelas leis que já não acompanham tal dinamismo sofram a necessária revisão. Temos que ter muito cuidado, no entanto, quando qualquer “vanguarda”, seja social, seja intelectual, seja mesmo comportamental (como é o caso de certos “vanguardismos sexuais” hoje em moda) resolvem inverter os conceitos democráticos, e pretendem usar a lei para instituir bandeiras. Já não se trata, neste caso, de mudar leis que já não refletem os valores sociais, mas de tentar mudar a sociedade, os próprios valores sociais através de mudanças legislativas que atendem ao anseio destas mesmas “vanguardas”, através da sua força de influência legislativa muitas vezes desproporcional à sua verdadeira significação. Adaptar a sociedade às suas próprias bandeiras, usando de uma conjunção política eventualmente favorável, não é democracia. Refiro-me, como exemplo, ao quanto proposto no artigo 121, § 1º, do projeto de código penal atualmente em tramitação no senado Federal. Ali, o projeto equipara aos homicídios qualificados pelo motivo torpe aqueles praticados “em razão de preconceito […] de orientação sexual e identidade de gênero”. Motivo torpe, para o Código Penal ora em vigor, é aquele vil, desprezível, absolutamente desproporcional com a conduta de matar alguém. O código penal exemplifica o homicídio cometido por motivo torpe como aquele cometido “mediante paga ou promessa de recompensa”, deixando claro que esta menção é exemplificativa, quando termina o texto dizendo “ou por outro motivo torpe”. Claro que todo homicídio é lamentável, e nenhum deveria ser cometido. Mas há casos em que tais crimes, por sua motivação ou circunstâncias, violam gravemente o próprio núcleo de coesão social, banalizando a vida humana de uma forma que merece uma reprimenda muito mais grave da nossa sociedade. É o caso do “crime de mando”, cometido mediante paga. A pergunta é, então, se o preconceito em razão de “orientação sexual ou de identidade de gênero” pode sempre ser visto como um motivo torpe, equiparado ao “crime de mando”, para o cometimento de um homicídio, mesmo dentro do sistema deste projeto de código penal que ora tramita no senado. E a resposta é negativa. De fato, o próprio projeto de código penal traz todo um capítulo daquilo que chama de “crimes contra a dignidade sexual” (art. 180 e seguintes do projeto). Ora, existem, portanto, diversas categorias de “orientações sexuais” que são consideradas indignas pelo próprio código, como é o caso das orientações sadistas, vale dizer, daquelas pessoas que somente sentem prazer sexual mediante a submissão e a indução de sofrimento a outrem, pela prática do sexo contra a vontade do parceiro. Práticas assim são sempre ilícitas, para este projeto, mas não se pode negar que há diversas pessoas cuja “identidade sexual” é exatamente esta: o sadismo. Assim, o preconceito contra sádicos tem fundamento na própria lei que se quer aprovar, mas pode qualificar como “torpe” um homicídio. Claro que o exemplo é extremo, mas o código penal é feito exatamente para qualificar os extremos. Um estuprado mata um sádico estuprador. Quem é o torpe, para este projeto? Estudemos outro exemplo. Um operário muito simples e de pouquíssima instrução, de origem rural, casado há muitos anos e frequentador de uma congregação religiosa muito conservadora, pagador de seus impostos e bom membro da comunidade, tem um filho de treze anos, que nunca praticou nem sequer demonstrou qualquer tendência ou prática homossexual. Ele educa cuidadosamente este filho, com muita firmeza, para a castidade e o pudor. Ora, este “projeto” de código penal considera que um jovem de treze anos já pode consentir validamente com qualquer ato sexual. Ora, um dia o referido operário chega em casa e, notando a ausência do filho, vai procurá-lo. Encontra-o na residência de uma pessoa do sexo masculino, de mais de cinquenta anos, cuja “identidade sexual” é a “efebofilia”, ou atração sexual por jovens adolescentes. Este mesmo senhor efebófilo atraiu o jovenzinho com um discurso aparentemente bem “moderninho” e liberado, de que experimentar é bom, de que ninguém deve escolher a própria “orientação sexual” sem experimentações, apenas por causa das “tradições” paternas, e está, neste mesmo momento, realizando uma penetração sexual no jovem, que oscila entre os conflitos interiores, a confusão adolescente e o fascínio pelo desconhecido. O pai operário irrompe pela porta mal fechada da casa do efebófilo e, ao ver o filho naquela posição, parte para arrancá-lo dali e levá-lo para casa. Mas o efebófilo acusa o pai em altos brados de “preconceituoso” e segura o menino, que, dividido entre a vergonha e o receio ao pai, hesita em acompanhá-lo. Na altercação que se segue, o pai acaba avançando contra o efebófilo e o mata. Quem é o torpe? Para o projeto, neste caso, é o pai. É muito fácil, pois, em nome da “eliminação dos preconceitos”, eliminar-se a própria divergência social e impor a todos a uniformidade das “bandeiras vanguardistas”, eliminando o próprio pluralismo que supostamente se queria defender. Facilmente, numa sociedade verdadeiramente pluralista, o “preconceito” de um é apenas o “conceito” do outro – mesmo que o “preconceito” seja “avançadinho” e o conceito, conservador. Para determinados “vanguardistas sexuais”, um casal monogâmico heterossexual pode parecer uma aberração inaceitável, e vice-versa. Não se discute que a nossa sociedade não admite a intolerância, e que crimes de intolerância devem ser mais gravemente reprimidos. A intolerância é o atentado direto contra a legítima pluralidade social, seja do avançado contra o conservador, seja o contrário. Mesmo quem tem “preconceito”, e julga reprovável a conduta do outro, deve tolerá-lo em nome da legítima pluralidade social. Mas quem é intolerante e alcança o poder político muitas vezes elimina, em nome da sua própria concepção de “vanguarda”, aquele de quem discorda. A intolerância, em nome da eliminação dos “preconceitos”, criminaliza a opinião do outro em nome da legitimidade de suas “causas sociais” ou “sexuais”; a tolerância, no entanto, admite o próprio preconceito como parte inevitável, e mesmo altamente desejável, do pluralismo social. Assim, criminalizar a intolerância contra uma legítima pluralidade social é democrático, mas criminalizar o simples preconceito é intolerância. E é exatamente isto que esta redação do projeto de código penal faz, neste particular.

terça-feira, 26 de junho de 2012

A autonomia entre Igreja e Estado no pensamento de São Paulo de Tarso

Em outra reflexão, tratei da intuição a respeito da autonomia das esferas religiosa e temporal como uma intuição propriamente cristã. Na verdade, esta intuição de Jesus, expressa no seu dito tantas vezes citado “a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mc 12, 17 e paralelo em Mt 22, 21) foi pela primeira vez sistematizada de modo profundo por São Paulo, com impecável correção jurídica. Pode-se considerar a Carta aos Romanos (e, em menor escala, a Carta aos Gálatas) como os dois primeiros (e ainda não ultrapassados) tratados sistemáticos sobre a autonomia das esferas, a correta articulação entre o poder estatal e a vida religiosa. Ao reconhecer que judeus e gentios (ou seja, todas as formas de organização pública da época) têm a lei (ou seja, um ordenamento estatal legítimo), mas que em nenhuma hipótese a lei é capaz de salvar o homem, São Paulo está fazendo um desenvolvimento muito profundo e até certo ponto inesperado daquela afirmação de Jesus que transcrevemos acima. E mais inesperado ainda é quando o mesmo Paulo de Tarso afirma: “Então eliminamos a lei através da fé? De modo algum! Pelo contrário, a consolidamos!” (Rm 3, 31). Assim, inaugura-se uma concepção de Estado que não coloca os fundamentos de sua legitimidade numa deidade (mesmo na forma de um onipotente “Poder Constituinte”, ou de uma impessoal e onisciente “norma fundamental hipotética”, ou de um invisível e onipresente “contrato social” esotérico), nem a submissão à legislação como caminho de redenção humana para qualquer afastamento com relação a um deus, seja na forma de uma sociedade corruptora que degenera o homem originalmente inocente de Rousseau, seja na forma de uma concessão pacificadora dos homens-lobo de Hobbes, ou de qualquer outro “mito de origem” iluminista ou marxista. Ao separar o plano contingente da convivência social e da necessária regulamentação estatal da conduta humana, por um lado, do plano da salvação e da Graça, por outro, São Paulo nos deu a base filosófica para uma teoria consistente da separação entre Estado e religião, ou melhor, entre Estado e redenção salvífica. Neste sentido, ele foi o primeiro a teorizar sobre a correta relação entre o ordenamento estatal e a vivência da fé religiosa e da busca de redenção. O estado é necessário, e sua obediência é dever de todos. Mas nessa obediência encontra-se somente o fundamento para a boa convivência humana (sem dúvida necessária para a salvação, mas não suficiente) e não uma relação direta com a ordem divina ou um caminho redentor. E é assim que se pode compreender a ordem de submissão à autoridade estatal que Paulo nos dá no capítulo 13 da sua Epístola aos Romanos: é claro, ali. que a autoridade humana é consentida por Deus, mas a ordem que ela estabelece não necessariamente é querida por Deus e pode sempre ser aperfeiçoada e debatida. Assim, o fundamento da coercitividade do ordenamento jurídico, não é, para São Paulo, a promessa de uma redenção pela lei, mas a constatação de fato de que há necessidade de uma ordem estatal, como realidade permitida por Deus para possibilitar a organização econômica e a convivência humana. Ocorre que essa estrutura estatal histórica não se confunde com o Reino de Deus (ou com um reino de deuses), e se lastreia na contingência, tendo, no entanto, um enorme potencial para transformar-se num ídolo. Assim, diz Paulo, submeto-me ao ordenamento jurídico porque Deus espera que eu seja obediente, mas não porque eu veja no direito uma redenção, ou no governante uma figura divina, nem sequer seu mandatário direto. Embora, é claro, o exercício do poder seja, sem dúvida, permitido por Deus em determinada configuração histórica. A relação entre o cidadão e o Estado é lastreada na necessidade de convivência, não de salvação. A salvação está no plano da graça, e somente lá. A obediência ao Estado é consequência, e pode representar (como de fato muitas vezes representa) a cruz necessária para chegar à redenção, mas não o caminho, nem a verdade, nem a vida. Quando, porém, os poderosos de determinado estado se esquecem de que a pessoa humana tem uma raiz transcendente e autotranscendente, ou porque imaginam que a ordem jurídica possa salvar-nos dando-nos uma “liberdade” que envolve a possibilidade de autodestruição e de destruição do outro, ou porque se tem uma visão de que a pessoa humana não precisa nem pode alcançar qualquer redenção, passam a ver os que creem, os que defendem que o fim da pessoa está além de si mesma, como adversários a serem derrotados ou, no mínimo, calados. Os cristãos são, então, o último obstáculo, para eles, na sua luta injusta para construir um ordenamento jurídico que possa invadir o plano do fim último da pessoa humana e tornar-se um “deus” totalitário. Estes poderosos, então, buscam calar os que não confiam nem nas suas promessas sempre reeditadas de “redenção” temporal, nem no seu niilismo desesperançado. Nós, cristãos, elegemos, para nossos governantes, muitas vezes grupos ou pessoas que não compartilham a nossa fé religiosa. Mas são eleitos apenas para cuidar das realidades temporais. Os votos que eles recebem não os legitimam para nos impor seus projetos salvíficos ou sua visão religiosa (ou antirreligiosa). São livres para tê-las, e mesmo para trazê-las à discussão pública ou viver em harmonia com elas tanto quanto quaisquer outros cidadãos. Mas os votos que receberam não os legitima a acreditar que, além de líderes políticos, passaram a ser também líderes religiosos – ou antirreligiosos. O perigo, portanto, é que os poderosos do mundo contemporâneo esqueçam-se de tais ensinamentos cristãos (preciosos mesmo para aqueles que nada sabem ou querem saber de Deus) e, em nome de uma “separação” entre estado e religião, que na verdade só “separa” as religiões que eles não podem controlar, voltem a exigir que se queime incenso ao César do momento, seja esse César o “proletário”, o evolucionista cientificista, o libertário sexual, o cientista ou o “porta-voz” do “povo” personificado. E que este incenso seja exatamente o cadáver de nossas crianças abortadas, o nosso amor próprio e pudor, a sanidade dos nossos filhos entorpecidos ou a nossa voz política.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

As freiras americanas e o economista colombiano

Bento XVI e as monjas rebeldes – Rodrigo Botero Montoya. Este é o nome do artigo que discuto agora. O sr. Rodrigo Botero Montoya é economista e foi ministro da Fazenda da Colômbia, segundo se apresenta. Escreve um artigo publicado hoje, 20 de junho de 2012, sobre os incidentes que estão ocorrendo entre a Santa Sé e as freiras americanas que ensinam erros morais como se doutrina católica fossem. Quanto à iniciativa da Santa Sé, trata-se de uma advertência estritamente interna corporis, estritamente teológica, da Congregação para a Doutrina da Fé às religiosas americanas que pregavam a masturbação, a homossexualidade e a pansexualidade a partir de suas posições dentro da Igreja, expressamente ensinando e propalando que a doutrina da Igreja sobre estes pontos não deve ser obedecida pelos católicos. Mas elas fizeram livremente um voto de obediência que também livremente querem descumprir, e foram advertidas por isto. Este autor do artigo é economista e ministro da fazenda da colômbia, portanto nem é frei ou freira, nem católico, nem ao menos teólogo. Perdeu uma boa oportunidade de ficar calado. Vou explicar porque. O argumento que ele usa é gratuito e imbecil. É mais ou menos assim: a Igreja uma vez advertiu um monge por desobediência e este monge saiu da Igreja, criou o protestantismo e gerou as guerras de religião. Assim, a Igreja Católica não deveria mais advertir nenhum religioso mesmo que ele estivesse na mais glamurosa desobediência, para não gerar novas guerras religiosas. Ora, isto é o mesmo, mutatis mutandis, de afirmar o seguinte: uma esposa que se desentendeu com o marido pegou uma faca, o assassinou e mutilou, então agora nenhum marido deve mais reclamar de nada que alguma esposa fizer, mesmo que seja errado, porque desencadeará muito justamente contra si um esquartejamento. No fundo, é dizer: se alguém promete obedecer ao Papa e desobedece, e em seguida cria uma guerra mundial para destruir o Papa, a culpa é do Papa. Insano. Vamos aplicar o raciocínio este sujeito no seu campo, a economia. Se um funcionário da Coca estiver convencido que a Pepsi é melhor, deve sair da Coca e ir para a Pepsi, não usar os recursos publicitários da Coca para fazer propaganda da Pepsi. Para ele, no entanto, a Coca não somente não deve advertir ou mesmo demitir o mau funcionário, como ainda deve doar suas instalações a ele para que ele passe a produzir apenas pepsi com as máquinas da Coca. Economistas ficam bem na economia. Católicos ficam bem na Igreja Católica. Para ser católico, como todo mundo sabe, precisa: 1. Professar publicamente a mesma fé, 2. Participar dos mesmos sacramentos, 3. submeter-se ao governo dos mesmos pastores e 4. Estar em comunhão com o Pontífice Romano. Ninguém é obrigado a ser católico nem a permanecer na Igreja, mas, ao fazê-lo, deve respeito a estes 4 princípios, tanto quanto um funcionário da Coca Cola deve respeito à Coca. Se freiras estão na Igreja, entraram nela livremente, sabendo que a obediência é um dos votos que livremente devem acolher, e que se não obedecerem aos quatro pontos acima especificados já não farão parte da Igreja. E quem julga se elas estão ou não nesta comunhão é o Papa, não este economista autor desta matéria. Ele não pode julgar o Papa em matéria religiosa sem automaticamente negar ao Papa a liberdade religiosa de ser Papa. E a liberdade de todos os outros católicos de obedecer ao Papa. Porque, se seguíssemos ao raciocínio deste autor aí, já não haveria igreja católica no mundo. As freirinhas americanas são livres para se masturbar e alardear que isso é muito bom e desejável aos olhos de Deus, viver a homossexualidade e pregar que isso é muito bom e desejável aos olhos de Deus, pregar a promiscuidade ou defender que o casamento não é a única opção para viver com castidade a sexualidade. Mas não são livres para fazer tudo isso em nome da Igreja Católica. Que aproveitem a sua própria liberdade religiosa e fundem uma nova Igreja, elegendo como Papa o sr. Rodrigo Montoya. A Igreja não vai desencadear nenhuma guerra religiosa quanto a isso - o Papa não tem divisões de exército e nunca teve. Se o nosso amigo estudasse melhor, veria que as guerrar religiosas deram-se entre estados nacionais em formação, por motivos econômicos e políticos, sob pretextos religiosos, e que a Igreja Católica nunca desencadeou nenhuma delas. E que a doutrina católica é bem diferente da muçulmana, e mesmo da protestante, quanto ao uso de meios militares para a imposição da fé.