quinta-feira, 20 de outubro de 2011

Os quadrinhos puros do direito - alguns pensamentos

Um colega, professor de direito e inteligentíssimo, enviou-se um link para uma "história em quadrinhos", na qual se apresenta, de maneira lúdica, aquilo que o autor acredita ser a doutrina de Hans Kelsen, o positivismo jurídico.O autor é Luíz Alberto Warat

O link para os quadrinhos é http://ruadosbragas223.blogspot.com/2009/03/kelsen-os-quadrinhos-puros-do-direito.html

Li os tais quadrinhos e fiz as seguintes observações para o meu amigo:

1. A primeira folha, que inicia com “existia uma grande confusão entre os juristas dogmáticos” é muito engraçada, e mostra uma visão em pastiche do pensamento de Kelsen sobre a realidade que lhe precedeu, além de apontar os nossos próprios preconceitos pós-contemporâneos como “pelo menos isso era o que pensava Kelsen”.

2. Para começar, não havia nenhuma “confusão entre os juristas dogmáticos”, nem Kelsen pensava isto. Os juristas sabiam exatamente de onde partiam e onde chegavam. Seria uma imbecilidade de Kelsen não reconhecer a solidez do pensamento kantiano, ou mesmo do pensamento hegeliano, sobre o direito, e colocar tudo numa "geleia geral". Quem escreveu isso nunca leu, por exemplo, Agostinho ou Tomás de Aquino, que, embora profundamente religiosos, sempre souberam exatamente a diferença entre Revelação, direito natural e direito positivo. Eu iria mais longe: todo pensamento jurídico de alto nível, mesmo antes de Kelsen, sempre esteve perfeitamente consciente de seus próprios pressupostos e de suas próprias consequências, bem como dos limites daquilo que chamava de “jurídico” e do que chamava de “moral” e de “religião”. Apenas, por não partir de uma asséptica “norma hipotética gnoseológica imaginária”, chegavam a conclusões diferentes do que o próprio Kelsen chegou.

3. Aponto mais duas pasteurizações: segundo tais quadrinhos, “Kelsen pensava que os juízes se sentiam imaculados e acreditavam que não matavam a justiça aplicando a lei como revelação divina”. Ora, eu diria: a) ser imaculado, segundo o texto dos quadrinhos, era exatamente o desejo de Kelsen, ou pelo menos criar uma “teoria imaculada do Direito”. A pergunta que não existe é: em que medida o Kelsen dos quadrinhos conseguiria evitar o erro que ele apontava nos juízes, e criar uma “teoria imaculada do direito”, se ele acreditava que o erro dos juízes era exatamente sentirem-se imaculados, mas no fundo renderem-se a uma instância “divina” na aplicação do direito? B) digo isto porque a pretensão de que Kelsen pudesse “criar”, na sua “imaginação”, uma “norma hipotética gnoseológica” que nos permitisse conhecer o direito (fazer “ciência do direito”) com a pureza de uma imaginação descontaminada pela humanidade, como se fosse um extraterrestre, é a pretensão de ser Deus. Isso me lembra Feuerbach, na sua “Essência do Cristianismo”: no fundo, parao autor dos quadrinhos, o erro de toda cultura anterior a este "novo Moisés" que é o Kelsen ali retratado seria a de projetar num Deus externo ao homem as perfeições que somente ao homem (figurado idealmente em Kelsen) cabem. O conhecimento do direito deveria vir, portanto, de uma “mente divina” como a de Kelsen, no sentido de uma mente que pudesse “imaginar”, (i.e., criar), livre de paixões e confusões, a baliza fundamental para todo o conhecimento (gnose) do direito posterior. Criaram, nestes quadrinhos, uma teoria pura do direito profundamente teológica: só que Kelsen, com sua infinita liberdade de “imaginar” a NFG, é Deus. Quem pensar o direito como pensa Kelsen, é puro. Quem pensar como pensam os “antigos”, é “impuro”. Isto é religião, da pior qualidade. Parece que Kelsen, aqui, encarna a figura do "deus-homem" de que trata Kant na sua obra "A Religião Dentro dos Limintes da Pura Razão". Ele dizia: "Na manifestação do deus-homem não é o que se apresenta aos nossos sentidos ou pode ser conhecido por experiência, senão o modelo santificante existente em nossa razão [de Kelsen, neste caso] o que constitui propriamente o objeto de fé santificante". Vale dizer, toda a pureza (descontaminação do "lodo" que nos faz juristas "impuros") estaria em render-se ao modelo santificante contido na Razão de Kelsen.

4. Ainda na primeira página, imputa-se aos “juízes antigos” três defeitos: sentiam-se imaculados, matavam a justiça aplicando a lei como revelação divina, eram super-heróis e confundiam esferas morais, políticos e jurídicos no mesmo “lodo”. Os legisladores, segundo os quadrinhos atribuem a Kelsen, erravam ao prestigiar o “espírito das leis”, este “velho fantasma do passado” que cuida das verdades por toda a eternidade. Na mesma página estão fundidas a teocracia, o leviatã hobbesiano, o romantismo jurídico do “espírito das leis” e o racionalismo iluminista. É o samba do crioulo doido: estes sistemas só ficaram confusos na cabeça dos maus juristas brasileiros. Lá na velha terra, onde eles foram criados, não somente eram absolutamente distintos, como eram incompatíveis entre si, e seus respectivos estudiosos e defensores tinham – e ainda têm - perfeita noção disso.

5. Na verdade, parece que o positivismo brasileiro (retratado nestes quadrinhos) colocou num mesmo caldeirão todos os filhos do iluminismo (excetuado, claro, o kelsenianismo, que também é filho do iluminismo, mas aqui é visto como uma nova religião) e os devorou antropofagicamente, apelando para a pureza da imaginação iluminada de Kelsen, este profeta possuidor da “pureza imaculada” que ele, segundo os quadrinhos, nega a quem não pense como ele (os juízes que se acreditavam “imaculados” são ridicularizados na primeira página, mas na página 6 o próprio Kelsen surge cercado da palavra “pureza” em vários formatos. Criou-se o verdadeiro “dogma da Imaculada Conceição de Kelsen”...

6. Dizer que Kelsen criou uma “teoria pura do saber” (gnose) e não uma “teoria do direito puro” é uma contradição com toda a crítica feita nas primeiras páginas, onde os juizes “antecessores” são ridicularizados exatamente porque, alegadamente, não conseguiam atinar com um “direito puro” e misturavam tudo no mesmo “lodo”. Ora, se não há um “direito puro”, mas apenas uma pura “gnose” do direito, então eles não podem jamais ser criticados por “misturarem” instâncias religiosas, sociológicas, morais, históricas ou qualquer outra em seus juízos jurídicos – porque eles estão produzindo “direito”, e não “ciência do direito”. Quem confundiu as instâncias foi o “quadrinheiro”...

7. Ora, se eu sou um extraterrestre e resolvo estudar as mulatas pelo mero deleite gnóstico, e então peço aos meus cientistas que imaginem uma “mulata ideal”, eu posso ter a absoluta certeza de que a minha “mulatologia” pode ser profundamente coerente do ponto de vista interno, mas que nenhum carioca jamais casaria com uma das “mulatas” que correspondesse a este modelo, porque os cientistas (todos os que eu conheço, pelo menos) têm um péssimo gosto para mulatas. Esta “norma mulatal hipotética” padeceria da “contradição tostines” (aqueles dos quais não se sabe se vendem mais porque são fresquinhos, ou se são fresquinhos porque vendem mais, lembra?). Vale dizer, para elaborar uma “norma fundamental mulatal” os cientistas teriam que estudar algumas mulatas antes de elaborar tal norma, mas eles não teriam como saber se alguém é mulata ou não antes da própria norma existir, portanto, eles nunca saberiam se as mulatas que permitiram a eles elaborar sua “norma de pureza” eram verdadeiras mulatas, senão depois de elaborar a “norma mulatal fundamental”. O nome deste vício de raciocínio é “petição de princípio”, que o autor dos quadrinhos não deve conhecer...

8. Vale dizer: como toda gnose, esta “teoria pura kelseniana” apresentada pelos quadrinhos é uma religião, aliás uma péssima religião, como toda gnose. Não preciso te ensinar, mas apenas te lembrar da estrutura básica de toda gnose: o “mundo” é ruim, é mau, mas guarda em si uma “fagulha” pura de bondade que os iluminados podem distinguir e anunciar para o mundo. Há religiões melhores. Embora Kelsen tenha sido um excelente lógico jurídico, insuperado neste campo muito estrito da ciência jurídica, ele cometeu uma falácia básica: a lógica é um excelente instrumento do pensamento, mas não é substrato ontológico, vale dizer: a realidade pode ser pensada logicamente, mas nunca pode ser substituída pela própria lógica. A lógica pode ser um grande instrumento para conversar sobre mulatas nos laboratórios, mas os lógicos jamais engendram lindas mulatas em laboratório, nem ao menos as conquistam.

9. Por fim, estes quadrinhos parecem muito mais uma apolgética religiosa do que divulgação científica. Transformar o velho Kelsen num ídolo religioso, no entanto, pode não ser uma boa ideia.

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

A Igreja não precisa de reboque

Há uma piada interessante, que me faz lembrar a situação de determinados grupos “tradicionalistas” radicais e sua relação tempestuosa com a Igreja e principalmente com o timoneiro da Barca de Pedro, o Papa.
A piada é assim: dois pescadores cearenses estavam em alto mar com sua jangada, quando caiu uma violenta tempestade. Um transatlântico inglês estava passando pela região e detectou a precária jangada e os dois jangadeiros rotos sobre ela.
O capitão do Transatlântico não teve dúvidas: aquelas duas pessoas rotas naqueles paus mambembes, enfrentando aquela terrível tempestade em alto mar, só podiam ser náufragos. Manobrou seu enorme e moderno transatlântico até bem próximo deles e,m fazendo uso do megafone, gritou palavras de alento em inglês, enquanto lhes atirava uma corda para içá-los a bordo.
Os dois pescadores cearenses não entendiam uma palavra de inglês. Entreolharam-se diante daquele palavreado e daquela corda que tombou no convés da jangada, e o mais jovem comentou:
-Que será que este gringo quer?
O mais velho respondeu:
- Deve estar querendo que nós reboque o navio dele!
É assim que eu vejo determinados grupos cismáticos, radicais, que romperam com a Igreja e hoje recebem com certo ar de superioridade e desprezo a corda que lhes é atirada pelo Papa, capitão deste grande e invencível navio que é a Igreja. Não, a Igreja não precisa de reboque.

domingo, 16 de outubro de 2011

A tradução da Apologética de Peter Kreeft

Este é um comentário sobre o livro "Manual de Apologética Cristã", de Peter Kreeft. Foi traduzido para o português por uma editora ligada a uma "igreja" evangélica, o que é de ser anotar, porque o autor, Peter Kreeft, é um excelente católico e profundo filósofo.
No entanto, a tradução em português possui alterações graves, que mudam o pensamento original de Peter Kreeft e fazem o livro atacar os católicos, o que seria contraditório para quem, como Peter Kreeft, é católico. Mas o editor brasileiro não hesita em publicar uma tradução falsa, infiel ao original, agressiva aos católicos.
Por exemplo, na página 25 da edição americana há o seguinte parágrafo:

"They also have a strong case in the press because the Church still
smells from the smoke of the Inquisition, when it made the very same
mistake contemporary liberals make: confusing heresy with heretics.
The spanish Inquisition wrongly destroyed heretics in order rightly to
destroy heresies; modern "liberals" wrongly loves heresies in order
rightly to love heretics.
Traduzido fielmente, ele ficaria assim:
"Eles também têm uma forte resistência na imprensa, porque a igreja ainda se ressente fortemente da fumaça da Inquisição, quando foi cometido o mesmo engano que os protestantes liberais de hoje fazem: confundir a heresia com os hereges. A inquisição espanhola erradamente destruiu hereges pela razão correta de combater as heresias. Os liberais de hoje amam equivocadamente as heresias pela razão correta de amar os hereges."
Bom, não se duvida que este texto é controverso, mesmo em inglês, já que, ao menos no caso da inquisição espanhola, a influência política foi bastante determinante nas condenações, muito mais do que as posturas propriamente eclesiais. Além disso, a propaganda protestante foi responsável pela deturpação da história, e valeu-se da mentira para tanto. É o que prova este excelente vídeo da BBC (insuspeita de catolicismo), no qual a pesquisa mais séria sobre a inquisição é muito bem explicada, que está disponível no seguinte link: http://gloria.tv/?media=177578
Mas este é apenas um comentário que eu quis fazer. O ponto fulcral é a deliberada alteração do texto na tradução brasileira. Aqui, ele foi deliberadamente traduzido de modo adulterado, assim:
"Precisamos ter cuidado com rótulos e posturas radicais e agressivas,
pois o cristianismo ainda exala o cheiro da fumaça da Inquisição, numa
época em que a Igreja Católica cometeu o mesmo erro dos liberais
contemporâneos: o erro de confundir as heresias com os hereges. A
Inquisição espanhola erroneamente queimou os hereges para destruir as
heresias. Os liberais modernos erroneamente amam as heresias com o
intuito correto de amar os hereges."

Como se pode ver, todo o sentido foi profundamente adulterado. Explico por pontos:

1. No texto original, dr. Peter menciona o "mistake of the
church" , incluindo, obviamente todos os cristãos. Como se sabe, enquanto a inquisição espanhola foi um órgão eclesial e político, com cuidados jurídicos, os protestantes costumavam levar seus próprios dissidentes à fogueira apenas por serem hereges, sem mais. Mas o tradutor pegou a referência que o dr. Peter fez sobre "a igreja" e traduziu como "a Igreja Católica". Para ter a redação que o texto tem em português, ele teria que ter a seguinte redação em inglês:
"we need to be careful with labels and radical attitudes, because CHRISTIANITY
still smells from the smoke of the inquisition, in a time when the CATHOLIC CHURCH made the very same mistake confusing heresy with heretics. The spanish Inquisition wrongly destroyed heretics in order rightly to destroy heresies; modern "liberals" wrongly loves heresies in order rightly to love heretics."
Mas a redação em inglês, das mãos do dr. Peter, é bem diferente desta,como vimos acima.
2. Assim, quando alguém lê o texto da edição brasileira, é induzido a pensar duas coisas que o texto do prof. Peter Kreeft jamais disse, acreditando, no entanto, que ele as tenha dito, já que não tem os orginais disponíveis para comparação. Ele é levado a crer que a Inquisição é um problema estritamente católico, e que a Igreja Católica esteve errada no particular. Bem, não só a Igreja não pode ser julgada, neste ponto específico, de uma forma tão desconectada do contexto (pois seria impossível dizer que a Igreja Católica errou quando julgou e entregou às mãos seculares os que espalhavam heresias, como uma maneira historicamente condicionada de proteger as almas dos seus filhos)como não há padrão para julgar senão dentro da própria doutrina da Igreja. Para os protestantes de então, a situação era muito mais grave: muitas pessoas foram liminarmente queimadas somente porque líderes protestantes discordavam delas e não queriam que elas pensassem como pensavam, como foi o caso dos calvinistas em Genebra e de Sir Thomas More na Inglaterra. Assim, a distorção na tradução é evidente, e feita, ao que paece, para atingir diretamente a Igreja Católica.
Há mais erros de tradução. Por exemplo, na página 29, a versão original em inglês diz:
"The object of faith means all things believed. For the Christian,
this means everything God reveals in the Bible; catholics include all
the creeds and universal binding teachings of the Church as well."

Quando traduzido, o texto em português maliciosamente ficou com a seguinte redação:
"O objeto da fé é tudo aquilo em que cremos. Para os cristãos
evangélicos, isso engloba tudo que Deus revelou na Bíblia".

Não se menciona a fé católica na tradução, alterando o texto original, que a menciona expressamente. E, em acréscimo, no lugar em que o texto original diz "para os Cristãos", o texto traduzido diz "para os cristãos 'evangélicos'".Isto tampouco está no texto original, é uma deturpação deliberada para atingir a fé católica.

É preciso, portanto, estar atento a estes ataques sutis à nossa fé. Neste caso específico, aplica-se o velho adágio italiano: "traduttore, traditore", quer dizer, o tradutor é um traidor.
A minha alegria por ver um livro tão consistentemente cristão, tão defensor da fé, ser traduzido por uma editora "evangélica" durou pouco. Cheguei a acreditar que o bom senso prevaleceria, que a verdadeira fé atrairia os corações sinceros. Mas adulterar deste jeito não pode ser acidental. Lamentável.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Em que creem os que creem

Eu estava agora no Shopping Iguatemi. Fui até lá para tentar assistir ao filme “homens e deuses”, que conta a história de religiosos trapistas que foram massacrados pelos muçulmanos na Argélia. Infelizmente o filme saíra de cartaz. Decepcionado, estava indo embora, quando resolvi passar na Livraria Cultura, para fazer uma coisa de que gosto muito, futucar livros.
Estava assim, concentrado e reclinado, mexendo nuns livros, quando encontrei um casal de professores meus, pessoas maravilhosas, profundos católicos. Após os cumprimentos de praxe, o professor, muito ligado às correntes mais liberais e “sociais” da Igreja, mostrou-me um livro: era o livro “em que creem os que não creem”, de Umberto Eco e Carlo Maria Martini. E me disse:
“Olha que bom livro! Pura doutrina Social da Igreja”. Você devia comprar.
E começou a ler a contracapa, que tratava de autotranscendência e sede de absoluto.
Fiquei calado. São tempos difíceis estes, e evito dar minha opinião sobre questões polêmicas, mesmo para quem se declara “católico”. É que as pessoas têm o péssimo hábito de ficar agressivas e retrucar com veemência quando você alega não concordar com alguém ou alguma coisa porque eles discordam da Igreja.
O professor perguntou:
Você sabe quem são estes? É o Umberto Eco e este outro aqui, o Martini, é um Cardeal!
Sim, eu sabia quem eram os dois, e minha opinião sobre os dois não era lá muito favorável. Limitei-me a dizer laconicamente:
Sim, eu os conheço.
O professor prosseguiu:
Você devia comprar este livro, é muito interessante, temos que dialogar, romper nosso isolamento, saber o que creem os que não creem, para arejar a Igreja, promover o cristianismo, romper nosso fechamento!
Eu realmente não queria dar minha opinião, mas ele insistia muito fortemente.
Olha – eu disse, medindo e pesando as minhas palavras – eu admiro muito a sua fé. - Tenho dificuldade de lidar com a minha própria, que é fininha como uma casca de ferida. Só olhar este tipo de livro já me dá uma grande ansiedade.
A professora, esposa do professor, que até então estivera olhando a estante à minha frente, ouviu só o final da minha frase e perguntou:
Ah, você está ansioso para ler o livro?
Ainda hesitando com as palavras, mas com o dever de sinceridade, respondi, com muita cautela:
Não, senhora, na verdade a ansiedade é para não ler. Este tipo de livro me deixa muito angustiado.
Você não tem curiosidade de conhecer em que creem os que não creem?
Não – respondi eu. - Na verdade, eu sei exatamente em que creem os que não creem. Eu era um deles até pouco tempo. Interessa-me agora saber exatamente em que creem os que creem, para que eu próprio possa ser um bom cristão.
A nossa conversa acabou aí, entre sorrisos amarelos de ambos os lados.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Acusações genéricas à Igreja Católica

Um colega de outro Estado, aqui no órgão onde eu trabalho, vem colocando na lista eletrônica de discussão, sistematicamente, emails com destino a todos os membros do órgão, agredindo com inverdades a Igreja Católica.

Quero deixar registrado aqui a última resposta que encaminhei à discussão, sem identificar os interlocutores, mas porque pode ser útil a quantos cristãos se vejam na mesma posição. Respondi assim:

Criticar é sempre bom, desde que respeitadas a verdade, a lealdade e a pluralidade da sociedade brasileira, bem como a pertença de fé do outro.

Assim, atacar a Igreja Católica com inverdades e imprecisões, contra sua Santa Sé, no Vaticano, é atacar os católicos, e foi isto que esta notícia distorcida que você divulgou fez, sejam quais sejam os motivos por trás dela.

Quanto à informação de que a visita do Papa foi "custeada pelo Estado espanhol, com arrocho dos Trabalhadores daquele país", tampouco é verdadeira. A visita do Papa, que é chefe de Estado com o qual a Espanha mantém boas relações diplomáticas, deu tanta despesa quanto a visita de qualquer chefe de Estado estrangeiro, contra os quais eu nunca vi ninguém se levantar em protestos. As atividades do Papa na Jornada Mundial da Juventude em Madri, que tinham cunho estritamente religioso, foram integralmente custeadas pelo Povo de Deus, e os dois milhões de peregrinos que para lá se dirigiram hospedaram-se, comeram e beberam e renderam muitos milhões de euros à estagnada economia espanhola. Não houve um centavo de prejuízo a nenhum "pobre trabalhador oprimido", ao contrário, a injeção de 160 milhões de euros numa economia espanhola à beira da falência, quantia que superou infinitamente qualquer gasto estatal espanhol, além da divulgação turística de Madri nos quatro cantos do mundo e a criação de inúmeros empregos, temporários e definitivos. O balanço oficial católico está divulgado jornalisticamente no seguinte endereço: http://agencia.ecclesia.pt/cgi-bin/noticia.pl?id=87073. Mas claro que isso irritou os inimigos da Igreja, e, diante dos fatos inatacáveis, só resta inventar versões. A responsabilidade pela invenção certamente é de quem inventa, mas cabe-nos o cuidado de checar sua veracidade antes de divulgá-las publicamente em rede estatal como esta.

Quanto à organização estatal argentina, estou certo de que a sua preocupação é sincera, mas também creio que este é um problema que envolve dois grupos interessados, os argentinos, que moram e custeiam aquele país democrático, e os católicos, que pertencem à Santa Madre Igreja que se relaciona deste ou daquele modo com o Estado argentino. Ambos são grupos formados por gente grandinha e que sabe se cuidar.

Essa história de "erros históricos do Vaticano", assim no genérico, me desculpe, é cantilena velha. Propaganda antieclesial e ofensiva. Por isso, é sempre bom que apontemos concretamente: 1) de quais "erros " estamos acusando a Igreja, e 2) com qual objetivo, e 3) como ela deveria ter se comportado num determinado caso histórico, bem como 4) qual o padrão de julgamento que estamos usando para comparar. Porque atacar o Vaticano genericamente é atacar a fé alheia, e atacar a fé alheia é sempre complicado - muito mais quando eventuais acusações são abstratas ou gratuitas, ou envolvem distorções ou inverdades. Assim, apenas peço que você cheque adequadamente a fonte das informações antes de colocar na rede, porque esta "missão" de "desmistificar o Vaticano" que você se atribui pode ofender a quem tem a fé católica, se não for feita com muito cuidado e responsabilidade. Pode soar como mero preconceito gratuito contra os católicos, veiculado em lista eletrônica de Estado brasileira.

Quanto ao tamanho de Deus e a relação d'Ele com a Santa Madre Igreja, estou certo de que isto é um problema de fé de cada um. Você é livre para crer no que quiser. Eu também. E a fé deve respeitar-se mutuamente, por isso deixo de entrar em tal discussão.

Tenho você nas minhas orações. Mas não vou entrar em debates sobre o particular.
Abraços do amigo,

terça-feira, 6 de setembro de 2011

O indiculus - resumo livre



Alguns, autodeclarando-se católicos, alegam concordar com a Santa Sé quanto à condenação dos pelagianos, mas censuram alguns mestres (em especial Santo Agostinho) como se houvessem exagerado em suas posições, no que diz respeito à Graça.
Daí a necessidade que teve a Santa Sé de publicar o indiculus (breve índice) sobre as questões pertinentes à Graça, para que se saiba qual é a verdadeira doutrina católica no particular.
O indiculus (cerca do século VI) foi atribuído inicialmente ao Papa Celestino I, mas hoje a tendência da historiografia é de atribuí-lo a São Próspero de Aquitânia. No entanto, quem quer que tenha sido o seu redator, o indiculus foi aprovado por sucessivos Papas como expressão autêntica da fé da Igreja, inclusive – e expressamente – numa carta do Papa Hormisdas ao Bispo africano Possessor, de 13.08.520.
Em apertadíssima suma, eis o que trata o indiculus:
1. Ninguém é bom por si mesmo, senão na medida em que Aquele que é o único Bom lhe der a participação de si (Mt 19. 17; Mc 10, 18; Lc 18, 19) Os que pensam que podem, por mérito próprio, ser justos, sem levar em consideração Aquele de quem recebem diariamente a Graça, e confiam poder conseguir grandes coisas sem Deus, desses certamente não podemos esperar algo de bom daqui para a frente.
2. Ninguém é capaz de resistir às concupiscências da carne ou às tentações do Diabo se não receber de Deus a ajuda diária na perseverança para a boa conduta.
3. Mesmo depois do batismo, o Senhor sabe que poderemos pecar de novo, reservou muitos meios para reerguer-nos, oferecendo-nos diariamente remédios sem cujo auxílio e sustentação jamais poderemos vencer os erros humanos. É de fato inevitável que, se vencemos com seu auxílio, sejamos irremediavelmente vencidos sem ele (Inocêncio I).
4. Só se faz bom uso do livre arbítrio pela graça de Cristo. Inocêncio I diz: “foi precisamente a liberdade que enganou o primeiro homem, que caiu no pecado por presunção, após ter afrouxado com excessiva indulgência os freios. E do estado de pecado não se poderia sair sem que a Providência o tivesse restituído ao primitivo estado de liberdade, com a regeneração proveniente do advento de Cristo.
5. Todo o empenho, todas as obras e méritos dos santos devem ser referidas à glória e louvor de Deus. Ninguém pode agradar a Deus senão por aquilo que Ele mesmo lhes dá. Papa Zózimo: “Não se deve exaltar a liberdade do arbítrio humano. A vontade para o bem é preparada pelo Senhor. Ele move os corações dos Seus filhos com paternais inspirações, para que façam algum bem. Em cada bem movimento da vontade humana, tem mais força o Seu auxílio.
6. De tal modo Deus age no coração dos homens e no próprio livre arbítrio que um santo pensamento, um piedoso propósito e todo movimento de boa vontade vêm de Deus, porque por Ele podemos algum bem, mas sem Ele nada podemos, Jo 15, 5. Diz o Papa Zózimo: “Não há tempo em que não necessitamos da ajuda de Deus. Em todos os nossos atos, dúvidas, pensamentos e sentimentos devem ser invocado nosso auxiliador e protetor. É soberba presumir algo de si.
7. A Santa Sé reconhece o Concílio de Cartago.
8. Os Padres ensinaram-nos a repelir a nefasta novidade pelagiana, ensinando-nos a atribuir à Graça de Cristo tanto o início da boa vontade quanto o aumento dos louváveis esforços e a perseverança neles até o fim. Consideremos o mistério das orações sacerdotais, sob a luz do princípio lex orandi, lex credendi. Quando se pede a clemência divina (para os hereges, cismáticos, infiéis, judeus, pecadores e catecúmenos) estas graças não são pedidas por mera formalidade, nem inutilmente. Deus se digna atrair a si muitíssimos homens, arrancando-os do poder das trevas para o Reino de Amor. Isto é de tal modo obra divina que se dá louvor e ação de graças a Deus por elas.
9. É assim que a Igreja age com os jovens e crianças que serão batizados. Não chegam à fonte da vida sem primeiro passar por um exorcismo, para liberar-se do “Príncipe deste mundo”, entregando-se a alma assim resgatada às mãos daquele que “venceu o homem forte”.
Professamos que Deus é o autor de todas as boas obras e disposições da alma e de todos os esforços e virtudes com que, desde o início da fé, tendemos para Deus, e não duvidamos que todos os méritos do homem são precedidos pela Graça daquele por quem começamos a querer e a fazer algum bem.
Por este auxílio o livre arbítrio não é tirado, mas libertado da cegueira, do desvio, das patologias e da imprudência. Deus, na sua infinita bondade, quer que sejam méritos nossos o que são dons seus. Dar-nos-á recompensas eternas por aquilo que ele mesmo nos deu praticar.
Deus não quer que em nós fique inativo aquilo que Ele nos deu para ser posto em ato, e não negligenciarmos. Se fraquejamos, recorramos a Ele, que salva a ruína de nossas vidas. Peçamos a Ele que nos livre do mal!
Para confessar a Graça de Deus, cremos, pois, ser suficiente o que nos ensinam os escritos da Santa Sé, e quem sustenta no contrário não pode se declarar católico. (Indiculus, resumo livre).

domingo, 4 de setembro de 2011

Três suicidas, a cultura da morte e um pouco de Chesterton

Há assuntos que nos interessam intelectualmente; outros nos deleitam. Outros assuntos nos atingem como raios na chuva. Falo especificamente do suicídio.
Por este assunto eu não tenho nenhum tipo de atração intelectual, muito menos deleite. Mas o fato de que três pessoas próximas a mim tenham se envolvido com o suicídio – duas delas com sucesso – faz com que este tema tenha entrado na minha vida assim, atingindo-me existencialmente.
Três pessoas, duas bem jovens. Um mundo envolvido por aquilo que o Papa João Paulo II chamou de “cultura da morte”.
O suicídio, me parece, está sendo bem romantizado, nos dias que correm. O suicida, em alguns casos, parece ver a si mesmo como um mártir da sua religião exclusiva. E às vezes é louvado e exaltado. É curioso que num mundo profundamente individualista como o nosso, o suicídio exerça esta certa fascinação, esta aura de ato extremo, de coerência e coragem. Porque, na verdade, é exatamente o contrário.
A cultura da morte é a cultura dos fracos. É a cultura dos que não têm forças para criar os filhos que geram, e por isso abortam. Dos que não conseguem sustentar seus velhos e moribundos, e por isso os assassinam e chamam de “eutanásia”. Dos que não suportam a vida e se matam. São os mártires do individualismo, mártires da própria heresia solitária.
Neste sentido, o suicida não é um mártir, por mais que o vejam assim os nossos individualistas contemporâneos, cultores do niilismo, do voluntarismo,do relativismo, do cinismo e da cultura da morte. É exatamente o contrário. O mártir é alguém que ama tanto a Deus, ama tanto a Vida, que é capaz de entregar esta vida terrena, que ele reconhece como um dom magnífico, em testemunho da verdade. O suicida é, de regra, alguém que odeia tanto os outros, nega tanto que exista alguma consistência no mundo que está fora da sua própria cabeça que, impossibilitado de matar todas as outras pessoas de uma só vez, mata a si mesmo para rejeitar simultaneamente todos os outros. É, sem dúvida, de regra, o ato mais desprovido de humildade que um ser humano pode cometer.
Abro um parêntese para comentar a questão do suicida que sobrevive; um dos três casos que mencionei acima foi exatamente um destes.
Neste caso, há um ganho adicional: o suicida tentado pode dizer a todos os outros: nada do que vocês fizeram até hoje foi suficiente para que eu os amasse. E mais, tratem-me bem, porque senão eu cometerei suicídio, e desta vez para valer. Estabelece-se então uma relação doentia de dominação, entre o suicida “tentado” e os que, mais próximos dele, estão paralisados pelo medo de que ele tente de novo e, desta vez, consiga. Vivem bajulando-o, verdadeiros lacaios desta divindade semivivente, repletos de culpa e de medo de que qualquer palavra errada, qualquer gesto de correção ou de repreensão cause uma nova tentativa de suicídio da qual eles (os parentes, não o suicida) carregarão eternamente a culpa.
Suicidas não são mártires. Claro que há causas patológicas para o suicídio, mas não é disso que trato aqui. Estou falando da deliberação suicida, do culto à melancolia, à morbidez, ao individualismo, ao niilismo, que parece ser a tônica do pensamento dominante em nossos dias. O suicida, neste sentido, é o ateu mais profundo: ele nega, em última instância, o direito do outro a existir.
Sobre este assunto, lembro as palavras de Chesterton, no livro “Ortodoxia”, capítulo V. Tratando do suicida, ele diz que “Não existe nenhuma criatura no cosmos, por mínima que seja, para quem a sua morte não é um escárnio. Quando alguém se enforca numa árvore, as folhas poderiam cair de raiva e os pássaros fugir em fúria, pois cada um deles recebeu uma afronta direta. (...)”. E prossegue:

“Mais ou menos na mesma época li uma solene bobagem de algum livre-pensador. Dizia ele que um suicida era simplesmente o mesmo que um mártir. A patente falácia desse texto ajudou-me a esclarecer a questão. Obviamente um suicida é o oposto de um mártir. Um mártir é um homem que se preocupa tanto com alguma coisa fora dele que se esquece de sua vida pessoal. Um suicida é um homem que se preocupa tão pouco com tudo o que está fora dele que ele quer ver o fim de tudo. Um quer que alguma coisa comece; o outro, que tudo acabe.”

Estou indo para a missa, em intenção dessas três pessoas que cruzaram e ainda cruzam a minha vida. Espero sinceramente que o Espírito Santo possa ter entrado em suas vidas, ainda que nos instantes finais de sua existência, devolvendo-lhes a possibilidade de salvação. Porque não há suicídio na vida eterna, nem tampouco possibilidade de sair do inferno se matando.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Carta da Congregação para a Doutrina da Fé de 1966

CARTA SOBRE OPINIÕES ERRÔNEAS NA INTERPRETAÇÃO DOS DECRETOS DO CCONCÍLIO VATICANO II
Congregação para a Doutrina da Fé

Depois da promulgação do Concílio Ecumênico Vaticano II, concluído recentemente, sapientíssimos documentos, tanto sobre questões doutrinais, quanto disciplinares, para promover eficazmente a doutrina da Igreja, incumbem a todo o Povo de Deus a lutar com todo o empenho para que se realize tudo o que, com a inspiração do Espírito Santo, foi solenemente proposto ou decretado naquele sínodo de Bispos, presidido pelo Romano Pontífice.
Á hierarquia compete o direito e o dever de vigiar, dirigir e promover o movimento de renovação que o Concílio começou, de modo que os documentos e decretos do referido Concílio recebam uma reta interpretação e sejam levados a efeito com exatidão segundo a força e o sentido dos mesmos. Portanto, esta doutrina deve ser defendida pelos Bispos, já que, como tais, gozam do poder de ensinar com autoridade, unidos à cabeça de Pedro. É digno de elogio que muitos Pastores do Concílio já tomaram a iniciativa de explicá-la convenientemente.
Sentimos, contudo, que de diversas partes chegam notícias de como não somente pululam os abusos na interpretação da doutrina do Concílio, como também de como aqui e ali surgem opiniões estranhas e audazes, que perturbam não pouco a alma de muitos fiéis. Devemos louvar os trabalhos ou intentos que buscam penetrar mais profundamente na verdade, distinguindo retamente entre aquilo em que se deve acreditar e o que é opinião; porém, pelos documentos examinados nesta Sagrada Congregação, consta que existem não poucas sentenças que, passando por alto facilmente os limites da simples opinião, parecem afetar o mesmo dogma e os fundamentos da fé.
Convém que expressemos, como exemplo, algumas das sentenças e erros, tal como são conhecidos através da relação de doutores e das publicações escritas.
1) Primeiramente, referimo-nos à Sagrada Revelação: há quem recorra à Sagrada Escritura, deixando de lado intencionalmente a Tradição, porém restringem o âmbito e a força da inspiração e da inerrância, já que pensam equivocadamente sobre o valor dos textos históricos.
2) 2) No que se refere à doutrina da Fé, diz-se que as fórmulas dogmáticas devem ser submetidas à evolução histórica, de tal modo que o sentido objetivo das mesmas seja exposto a mudanças.
3) Esquece-se ou subestima-se o Magistério ordinário da Igreja, principalmente do Romano Pontífice, de tal maneira que se relega ao plano das coisas opináveis.
4) Alguns quase não reconhecem a verdade objetiva absoluta, firme e imutável, expondo tudo a um certo relativismo, alegando o falaz argumento de que qualquer verdade deve seguir necessariamente o ritmo da evolução da consciência e da história.
5) Ataca-se a admirável pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo, quando, ao refletir sobre a Cristologia, utilizam-se tais conceitos de natureza e pessoa, que apenas podem se conciliar com as definições dogmáticas. Insinua-se certo humanismo pelo qual o Cristo é reduzido à condição de simples homem, que foi adquirindo pouco a pouco consciência de sua filiação divina, Sua concepção virginal, seus milagres e sua Ressurreição são concedidos de palavra, porém frequentemente reduzem-se à mera ordem natural.
6) Igualmente, ao tratar da teologia dos sacramentos, alguns elementos são ignorados ou não se lhes presta a suficiente atenção. Sobretudo no que se refere à Santíssima Eucaristia. Não falta quem discuta sobre a presença real de Cristo sob as espécies de pão e vinho, defendendo um exacerbado simbolismo, como se pão e vinho não se convertessem no Corpo e Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo pela transubstanciação, mas que simplesmente fossem empregados com certa significação. Há quem insista mais no conceito de ágape, com relação à missa, do que no de Sacrifício.
7) Alguns desejam explicar o Sacramento da Penitência como um meio de reconciliação com a Igreja, sem explicar suficientemente a reconciliação com Deus ofendido. Pretendem que, ao celebrar este Sacramento, não seja necessária a confissão pessoal dos pecados, mas somente se preocupem em expressar a função social da reconciliação com a Igreja.
8) 8) Não falta quem menospreze a doutrina do Concílio de Trento sobre o Pecado Original, ou quem a interprete obscurecendo a culpa original de Adão ou, ao menos, a transmissão do pecado.
9) Não são menores os erros que circulam no âmbito da teologia moral. Com efeito, não poucos se atrevem a refutar a razão objetiva da moralidade; outros não aceitam a lei natural e defendem, por outro lado, a legitimidade da chamada “moral de situação”. Propagam-se opiniões perniciosas sobre a moralidade e a responsabilidade em matéria sexual e matrimonial.
10) A todos estes temas, temos de acrescentar uma nota sobre o Ecumenismo. A Sé Apostólica, certamente, louva todos os que, no espírito do Decreto Conciliar sobre o ecumenismo, promovem iniciativas para fomentar a caridade com os irmãos separados e atraí-los à unidade da Igreja; porém lamenta que não falte quem, interpretando a seu modo o decreto Conciliar, exija uma ação ecumênica que vá contra a verdade, assim como contra a unidade da Fé e da Igreja, fomentando um perigoso irenismo e indiferentismo, que é totalmente alheio à mente do Concílio.
Espalhada esta classe de erros e perigos, apresentamo-los sumariamente, nesta Carta aos Ordinários do lugar, para que cada um, segundo seu cargo e ofício, cuide de refreá-los e preveni-los.
Este Sagrado Dicastério roga encarecidamente para que os Ordinários do lugar tratem disso nas reuniões de suas conferências episcopais e enviem relações à Santa Sé, aconselhando o que creem oportuno, antes da festa da Natividade de Nosso senhor Jesus Cristo do ano em curso.
Esta carta, que, por uma óbvia razão de prudência, nos impede de fazê-la de domínio público, deve ser guardada sob estrito segredo pelos Ordinários e por todos aqueles que com justa causa a ensinam. Roma, 24 de julho de 1966. A. Card. Ottaviani, Pró-prefeito.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

A Graça e a Tradição Católica

A graça é o oxigênio da teologia. A teologia inclui a graça em seu próprio conceito. É que o cristianismo não é um produto da razão humana, mas dom de Deus, revelação. Sem esta mensagem vinda do céu, sem a Revelação, a própria teologia cristã seria inconcebível. Apenas a Revelação nos mostra o que Deus é, o que quer ser para nós e o que quis que fôssemos para ele – Ele se dá a nós numa doação insuspeitada, que nos penetra até o íntimo da natureza humana e a eleva, fazendo-a participar da própria vida íntima da Trindade.
É preciso, nesta altura, questionar a própria antropologia cristã.
O homem foi constituído na justiça original, mas a perdeu pelo pecado. Importante guardar a noção da graça para entender esta antropologia e sua dialética natural/sobrenatural, natureza/Graça, bem como o pecado e a ruptura transcendental Deus/homem.
O Deus da Graça é o Deus Trindade, verdadeiro, pessoal e vivo. A graça define-se, em sua essência profunda, como a doação das três pessoas divinas, que penetram no homem e o transformam num templo.
Uma vez que a relação sobrenatural de amizade com Deus foi rompida pelo homem através do pecado, ele não poderia jamais restabelecê-la por suas próprias forças. Perdeu-a para si e para seus descendentes, pois não tinha direito a ela. Não se pode reclamar o amor como direito.
Por isso, desde o princípio, com a queda, delineia-se também a esperança de um Salvador, que é, como agora se sabe, o próprio Filho de Deus, que, pela sua morte e ressurreição, restabelece a intimidade entre o homem e Deus (Gl 4, 4-6).
Assim, a graça tem coloração cristológica, e a obra de Cristo é o superabundante restabelecimento da primitiva comunhão sobrenatural com Deus (Cf. Rm 5, 20 – Onde abundou o pecado, superabundou a graça).
A doação filial do Verbo é consumada como o primeiro de uma multidão de irmãos, a família dos filhos de Deus, que se chama Igreja. Ela é visível, como convém ao mundo material no qual se desenrola a vida humana, mas, ao mesmo tempo, instrumento eficaz da Graça divina que é, na verdade, a graça de Jesus Cristo. A Igreja tem caráter sacramental, capaz de alcançar o homem em cada instante de sua vida. Tais são os sacramentos.
Os santos, assim, são as pessoas dóceis ao dom de Deus. Eles mostram o que pode ser a vida humana que não interpõe obstáculos à graça. Santidade é o fruto pleno da graça, desenvolvimento harmônico que alicerça as grandes virtudes cristãs.
A consumação final da Graça dá-se nos planos pessoal, social e cósmico. Ela envolve a vida sem fim, a bem-aventurança eterna e a ressurreição da carne (dimensão corporal).
A graça envolve toda a história da salvação, que conhecemos pela Revelação.
A graça pressupõe a colaboração pelo homem, e aí surgem os problemas da delicada relação entre graça e liberdade, a discussão interminável sobre as obras e seu valor e a alegada possibilidade de chegar, sem a graça, aos fins sobrenaturais.
O primeiro ataque substancial ao dogma do pecado original veio do pelagianismo. Esta doutrina negava a ordem sobrenatural e, por consequência, negava a graça. Os pelagianos defendiam que Adão fora criado na mesma condição em que agora se acham todos os homens, ou seja, mortal, com todas as qualidades inerentes à natureza humana, sem nenhuma elevação natural à adoção divina ou à participação na vida do Criador.. Assim o pecado de Adão fez-lhe merecer o castigo, mas permaneceu restrito a ele. Ele seria apenas um mau exemplo.
São pilares do pelagianismo: um naturalismo que exclui a ordem sobrenatural, a independência da vontade humana com relação a Deus. Está aí uma raiz inadvertidamente ateísta numa doutrina que surgiu para incentivar o esforço humano, numa época de vida espiritual relaxada.
A graça, para os pelagianos, é um dom externo, consistente: 1. Na Revelação. 2. na Lei. 3. no exemplo de Cristo, 4. Na liberdade humana, que é a capacidade natural de fazer o bem, que Pelágio chama de “graça por excelência”.
Já em 418 o Concílio de Cartago condenava como anátema quem dissesse que a Graça de Deus, pela qual o homem recebe a justificação por meio de Nosso Senhor Jesus Cristo, só vale para a remissão dos pecados já cometidos, mas não como ajuda para não cometê-los. Anatematiza também os que afirmam que a graça só ajuda a não pecar porque revela o sentido dos preceitos (ciência), mas não porque concede a caridade, o desejo e a força para fazer o bem. O Concílio lembra que, segundo 1Cor 8, 2, a ciência incha, mas a caridade edifica. Não se deve, pois, crer que a graça daria a ciência que infla, mas não a caridade que edifica, porque “o amor vem de Deus” (1Jo 4,7).
O Concílio condena quem disser que a graça da justificação nos é dada para que mais facilmente possamos cumprir, pela graça, o que com o livre-arbítrio nos é mandado fazer, como se, ainda sem a graça, pudéssemos fazê-lo, embora não facilmente. Jesus, lembra o Concílio, nunca disse que sem ele”mais dificilmente se pode fazer. Ele disse simplesmente “sem mim nada podeis fazer (Jo 15, 5).
O Concílio lembra a passagem de 1Jo 1,8, em que o apóstolo diz que “se dissermos que não temos pecado enganamo-nos, e a verdade não está em nós”, aponta ainda que é falso dizer que o que a Bíblia quis dizer, neste trecho, foi apenas que “por humildade dizemos que não temos pecado, mas não porque verdadeiramente assim o seja”. Isto não dizemos, diz o Concílio, só por humildade, mas porque verdadeiramente assim é. Tanto que o apóstolo não diz, neste trecho, que ao falarmos assim, “a humildade não está em nós”, mas “a verdade não está em nós”.
O Concílio prossegue afirmando que quem disser que os santos pedem a Deus que “perdoe os seus pecados” apenas intercedendo pelos outros, pois não têm mais necessidade deste pedido para si mesmo deve ser anatematizado. Pois “cometemos todos muitos pecados”, diz TG 3,2. Cita outras passagens bíblicas, como o Sl 42,2, 1Rs 8,46, Jo 37,7 e Dn 9, 5.15. Destaca em especial Dn 9, 20, onde o profeta ora e se confessa por seus próprios pecados e pelos pecados do povo, mostrando profeticamente que previu que os hereges entenderiam mal a Palavra de Deus. Assim, não se pode dizer que os santos dizem “perdoai os nossos pecados” apenas por humildade, e não para confessar uma realidade. Se isto for assim, admitir-se-ia que os santos fariam oração mentindo, não aos homens, mas a Deus, dizendo com os lábios que querem ser perdoados, enquanto afirmam com o coração que não têm faltas a serem perdoadas. Anátema a quem defender tal proposição.
O pelagianismo, com sua tendência para negar o mundo sobrenatural e a graça, sobrevive ainda hoje em muitos corações.
Mas, como problema dogmático, liquidou-se nos concílios africanos do século V, aprovados pela Igreja Universal, de modo que o pelagianismo propriamente dito acabou no século V.
O semipelagianismo é relativamente moderno; poder-se-ia falar melhor, talvez, em “antiagostinismo”. Na prática, foi uma reação exagerada contra algumas frases de Santo Agostinho sobre a economia da graça e sobre a relação entre a livre vontade do homem e a ação de Deus na ordem da salvação.
A supremacia da graça em Santo Agostinho foi sustentada em quatro teses: 1. Todos os atos que conduzem à salvação são praticados com a ajuda da graça. 2. A salvação é dom gratuito de Deus. 3. Deus quer a salvação de todos. 4. A liberdade humana permanece intacta, mesmo sob o influxo da graça.
Já em vida de Santo Agostinho esses quatro enunciados pareciam difíceis de reconciliar entre si. Houve uma resistência, em especial, dos monges do sul da França, ainda no século V. João Cassiano e São Vicente de Lérins, este último com o Communitorium, provavelmente dirigido, em polêmica, contra o Santo Doutor. Assim, quando Santo Agostinho levantava uma tese que parecia ser a de que “Deus predestina gratuitamente quem Ele quiser”, a objeção dos adversários era que para a graça inicial se exigem e bastam os próprios méritos, porque Deus concede a graça santificante àqueles que, no exercício da própria liberdade, dela se tornaram merecedores. Isto, segundo eles, garantiria a igualdade de condições e o respeito, por parte de Deus, da liberdade humana.
O Papa São celestino, avisado da polêmica, posicionou-se em favor de Santo Agostinho, mas sem tomar posição em favor de todas as suas afirmações. Esta tem sido a posição da Igreja desde então: reconhecer Santo Agostinho como autoridade indiscutível, sem canonizar incondicionalmente suas afirmações – o que de resto nem o próprio Santo Agostinho fez (Santo Agostinho, Retractationes, prólogo). Os jansenistas proporão isso depois, mas serão refutados.
A carta de São Celestino aos bispos gauleses é acompanhada com um indiculus, inicialmente a ele atribuído, mas cuja autoria hoje tende-se a atribuir a São Próspero de Aquitânia. Mas o indiculus expressa a fé tradicional da Igreja, e foi expressamente reconhecido pelo Papa São Horsmisdas, em sua recomendação ao Bispo africano Possessor como testemunho da fé da Igreja.

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

A Justificação pela Graça (2)

É bom ouvir, neste ponto, uma interessante discussão colocada por Servais Pinckaers sobre a chamada “liberdade de indiferença” e a “liberdade de excelência”. Para Pinckaers, neste conflito da noção de liberdade de indiferença com a liberdade de excelência estaria toda a raiz do conflito do homem moderno com Deus, e o início da falta de compreensão da natureza da Graça que a transformou numa adversária da liberdade humana. De fato, a graça é adversária de uma liberdade concebida como “liberdade de indiferença”, quer dizer, a liberdade humana entendida como a possibilidade de escolher indiferentemente entre quaisquer dois contrários. Tudo isso começou para compreensão equivocada sobre o que é a onipotência de Deus, na idade média – influência, segundo alguns estudiosos, do muçulmanismo e seu Deus implacavelmente onipotente. Explicando a chamada “liberdade de indiferença” e seu surgimento histórico, diz Pinckaers:
“Quando consideramos a liberdade de indiferença, descobrimos que estamos em um novo universo moral. Ele está instalado entre duas liberdades que se confrontam: a liberdade da pessoa humana e a liberdade de Deus. Não há vínculos naturais entre as duas, porque a natureza está agora subordinada à liberdade. A natureza estabelece apenas um relacionamento exterior caracterizado por suas diferenças: a onipotência do Criador dá a ele total poder sobre a pessoa humana, que ele exerce especialmente por meio da lei moral. A lei moral expressa a vontade divina, que é perfeitamente livre e soberana, enquanto limita a vontade humana, comandando ou proibindo certos atos, com a força da obrigação. A lei é a fonte da moralidade. De fato, o ato humano, uma vez que é nascido de uma escolha entre contrários, é por natureza indiferente; ele se torna moralmente bom ou mal na medida que se conforme a uma obrigação legal. A própria lei depende inteiramente de deus. Deus poderia, em princípio, por um mero exercício de vontade, modificar quaisquer dos preceitos legais. Ockham levou essa visão até o seu extremo lógico. Sem hesitar, ele afirmou que, se Deus ordenasse alguém a odiá-lo, neste caso o próprio ódio tornar-se-ia bom, por ser um ato de obediência à vontade do Criador. Seria impossível expressar mais claramente a visão de que a obediência à lei tem prioridade sobre o amor.
Tratando, no entanto, da chamada “liberdade de excelência”, ou seja, aquela liberdade que consiste em estar livre de amarras na busca da verdadeira felicidade, ou bem-aventurança, como nós cristãos chamamos, Pinckaers escreve:
“Podemos comparar a liberdade de excelência com uma habilidade adquirida numa arte ou profissão; ela é a capacidade de realizar seus atos quando e como se quer, como trabalhos de alta qualidade que são perfeitos em seus domínios. Desde o nascimento, recebemos a liberdade moral como um talento a ser desenvolvido, como uma semente contendo o conhecimento da verdade e a inclinação para o bem e a felicidade, uma inclinação diversificada em função do que os antigos chamavam de semina virtutum, as sementes das virtudes. No início de nossas vidas, essas capacidades são fracas, como é o caso de uma criança ou de um aprendiz. Como as nossas personalidades, devemos formar a nossa liberdade através de uma educação compatível com o nosso nível de desenvolvimento. Esse processo educacional parece atravessar três estágios, análogos aos estágios de uma vida humana. Correspondendo à infância, há o aprendizado das regras e normas do agir, durante o qual aprendemos com o auxílio dos parentes e professores como viver uma vida disciplinada. Depois há a adolescência na vida moral, caracterizada pela independência progressiva e iniciativa pessoal crescente, guiada pelo próprio gosto pela verdade e pelo bem e reforçada pela experiência pessoal. Aparece então a idade da maturidade, quando as virtudes florescem como um talento nas artes: é uma força ousada, inteligente e generosa, a capacidade de realizar plenamente trabalhos de longa duração que trazem frutos a muitos; assegura facilidade e prazer na ação.” (Pinckaers, Servais, La Morale Catholic, (c) 2001 by St. Augustine's Press, ed. 2003, South Bend, Indiana, 141, tradução minha).
Não há. Portanto, nenhuma possibilidade de oposição entre a graça e a liberdade humana, entendida corretamente como liberdade de excelência. E, é claro, o homem pode sempre escolher não buscar a bem-aventurança, ou seja, o seu livre arbítrio o permite resistir e rejeitar a graça. Mas, ao rejeitar a graça, o homem já não é livre: qualquer caminho que faça está desprovido do bem e, portanto, é incapaz de levá-lo ao seu fim último. Neste sentido, pode-se dizer que o homem é livre para rejeitar a própria liberdade, mas não é livre para, tendo-a rejeitado, desfrutar ainda dela. O Concílio de Trento coloca assim:
“Quando Deus toca o coração do o homem pela iluminação do Espírito Santo, o homem não é insensível a tal inspiração, que pode, aliás, rejeitar; e, no entanto, ele não pode tampouco, sem a graça divina, chegar pela vontade livre à justiça diante dele.” (Concílio de Trento, DS 1525)
A justificação é a obra mais excelente do amor de Deus, manifestado em Jesus Cristo e concedido pelo Espírito Santo. Santo Agostinho pensa que “a justificação do ímpio é uma obra maior que a criação dos céus e da terra”, pois “os céus e a terra passarão, ao passo que a salvação e a justificação dos eleitos permanecerão para sempre”. (Comentários ao Evangelho de João 72, 3). Pensa até que a justificação dos pecadores é uma obra maior do que a criação dos anjos na justiça, pelo fato de testemunhar uma misericórdia maior.
O Espírito Santo é o mestre interior. Gerando “o homem interior”, a justificação implica a santificação de todo o ser:
“Como outrora entregastes os vossos membros à escravidão da impureza e da desordem, entregai agora os vossos membros ao serviço da justiça, para a santificação. (…) Mas agora, libertos do pecado e postos a serviço de Deus, tendes, como fruto, a santificação, e o fim é a vida eterna (Rm 6, 19-22).”

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

A Justificação pela graça (1)

A graça do Espírito Santo tem o poder de nos justificar, isto é, purificar-nos de nossos pecados e comunicar-nos a justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo (Paulo diz em Romanos 3, 22: “Justiça de Deus que opera pela fé em Jesus Cristo, em favor dos que creem” e pelo batismo.
A graça do espírito Santo nos justifica. Isso significa:
1. Purificar-nos dos nossos pecados.
2. Comunicar-nos a justiça de Deus, pela fé.
Como será dito abaixo, a expressão “justiça de Deus” significa “a retidão do amor divino”, que perdemos pelo pecado original. A amizade inicial com Deus, que nos foi concedida por graça, é retomada, também por graça, pelos méritos da paixão, morte e ressurreição de Nosso Senhor Jesus Cristo, que nos são aplicados com duas condições: a fé e o batismo. Eles nos devolvem a vida sobrenatural, pela qual voltamos à amizade com Deus, e que nos foi perdida pelo Pecado Original.
É neste tom que o catecismo passa a citar Rm 6, 8-11: “Mas, se morremos com Cristo, temos fé de que também viveremos com Ele, sabendo que Cristo, uma vez ressuscitado dentre os mortos, já não morre, a morte já não tem mais domínio sobre Ele. Porque, morrendo, Ele morreu para o pecado de uma vez por todas; vivendo, Ele vive para Deus. Assim também vós considerai-vos mortos para o pecado e vivos para Deus em Cristo Jesus (Rm 6,8-11).”
Pelo poder do Espírito Santo, participamos da Paixão de Cristo, morrendo para o pecado, e da ressurreição, nascendo para uma vida nova; somos os membros do seu Corpo, que é a Igreja, os sarmentos enxertados na Videira, que é Ele mesmo. (A imagem da videira está em João 15, 1-4). Neste sentido, temos a vida sobrenatural, mas não como uma propriedade, mas como uma relação: a relação com Nosso Senhor Jesus Cristo, na Igreja. Eis a diferença fundamental entre os gnósticos e os cristãos. Para aqueles, somos divinos por natureza, apenas não sabemos disso porque estamos presos na matéria má e entorpecidos pelos falsos conhecimentos. Para nós cristãos, somos divinizados apenas por graça, enquanto permanecermos no amor de Deus, que é amor trinitário em si mesmo.
Sobre isso, Santo Atanásio diz: “Pelo Espírito, temos parte com Deus. (…) Pela participação do Espírito, nós nos tornamos participantes da natureza divina. (…) Por isso, aqueles em quem o Espírito habita são divinizados.” (Ep. Serapião).
A primeira obra da graça do Espírito Santo é a conversão que opera a justificação segundo o anúncio de Jesus Cristo no princípio do Evangelho: “Arrependei-vos (convertei-vos), porque está próximo o Reino dos Céus.” (Mt 4, 17). Sob a moção da graça, o homem se volta para Deus e se aparta do pecado, acolhendo, assim, o perdão e a justiça do alto. “A justificação comporta a remissão dos pecados, a santificação e a renovação do homem interior”. É o que diz o Concílio de Trento, DS 1528. Vale dizer, Deus Nosso Senhor, no seu amor trinitário, transborda a graça em nosso favor, tem a primazia do amor, toma a iniciativa de nos buscar. Envia a graça que nos faz querer a conversão, e a graça que também nos aparta do pecado e nos faz acolher o perdão e a justiça do alto. Sem a graça, não nos convertemos. Sem a graça, não somos justificados. E não somos nós os que tomam a iniciativa de convertermo-nos, mas Deus nos manda a graça para que queiramos a nossa conversão. A justificação, então, comporta:
1. A remissão dos pecados;
2. a santificação.
3. A renovação interior do homem.
A justificação não é, portanto, uma “capa” que é colocada por cima de uma suposta “podridão” humana irremediável, como creem alguns. A justificação importa uma real remissão dos pecados, um processo real de santificação e uma renovação interior do homem, que completa, por mera bondade e por mera liberalidade divina, a deficiência que existe em nossa natureza ferida pelo pecado original. Tudo isso se aperfeiçoa no sacramento do batismo. É certo, no entanto, que a santificação é um processo, e que o homem pode resistir à graça e escolher ficar longe de Deus. A iniciativa para o mal é sempre do homem, e é sempre possível, mesmo naqueles já justificados – por isso, São Paulo dirá: “quem está de pé, veja que não caia” (1Cor 10, 12). Por isso, a justificação é como uma florzinha suave, que precisa ser cuidada e regada todo dia, e que precisa, em alguns casos, de uma intervenção drástica para não morrer – consistente no sacramento da confissão (Jo 20, 22-23). Mas nos faz santos de verdade, àqueles que não resistem à graça.
A justificação aparta o homem do pecado, que contradiz o amor de Deus, e lhe purifica o coração. A justificação ocorre graças à iniciativa da misericórdia de Deus, que oferece o perdão. A justificação reconcilia o homem com Deus; liberta-o da servidão do pecado e o cura.
São três efeitos, portanto, da justificação:
1. Reconcilia o homem com Deus.
2. Liberta-o da servidão do pecado.
3. Cura-o.
A justificação é, ao mesmo tempo, o acolhimento da justiça de Deus pela fé em Jesus Cristo. A justiça designa aqui a retidão do amor divino. Com a justificação, a fé, a esperança e a caridade se derramam em nosso corações é é-nos concedida a obediência à palavra divina.
São as chamadas virtudes infusas, que não são concedidas como efeito do batismo, e que tantos nem sabem que possuem, que eu muitas vezes desprezei em muinha vida (quase sempre!) que são verdadeiros depósitos à disposição de todos nós, justificados pelo batismo e tornados filhos de Deus (e nós o somos!, 1Jo 3,1)
A justificação nos foi merecida pela paixão de Cristo, que se ofereceu na cruz como hóstia viva, santa e agradável a Deus, e cujo sangue se tornou instrumento de propiciação pelos pecados de toda a humanidade. A justificação é concedida pelo Batismo, sacramento da fé. Torna-nos conformes à justiça de Deus, que nos faz interiormente justos pelo poder de sua misericórdia. Tem como alvo a glória de Deus e do Cristo, e o dom da vida eterna (Trento, DS 1529). Ninguém pode merecer a graça, mas a morte, nós merecemos: o salário do pecado é a morte (Rom 6, 23), mas a Vida Eterna nos vem por dom, para a glória de Deus e do Cristo.
“Agora, porém, independentemente da lei, se manifestou a justiça de Deus, testemunhada pela lei e pelos profetas, justiça de Deus que opera pela fé em Jesus Cristo, em favor de todos os que creem – pois não há diferença, visto que todos pecaram e todos estão privados da glória de Deus – e são justificados gratuitamente, por sua graça, em virtude da redenção realizada em Cristo Jesus. Deus o expôs como instrumento de propiciação, por seu próprio sangue, mediante a fé. Ele queria assim manifestar sua justiça, pelo fato de ter deixado sem punição os pecados de outrora, no tempo da paciência de Deus; ele queria manifestar sua justiça no tempo presente, para mostrar-se justo e para justificar aquele que tem fé em Jesus (Rom 3, 21-26).
A justificação estabelece a colaboração entre a graça de Deus e a liberdade do homem. Do lado humano, ela se exprime no assentimento da fé à palavra de Deus, que convida o homem à conversão, e na cooperação da caridade, no impulso do Espírito Santo, que o previne e guarda. A graça pressupõe a natureza, nunca a violenta. A liberdade é elevada pela Graça; não há oposição entre liberdade e graça, ao contrário, somente há verdadeira liberdade na graça.
O texto ficou muito longo, continuarei depois.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

Ainda a discussão com o colega ateu

O colega ateu, com quem venho discutindo há alguns dias, ficou surpreso com a minha colocação de que o que mais prejudica o mundo hoje é a credulidade, não o ateísmo. E me perguntou: Será que você agora é laico? ou seu deus também é peculiar? Eis a minha resposta:

caro amigo,

Minha resposta será um pouco longa, mas você merece a minha atenção detida.

Sempre fui laico, ou melhor, leigo, de laos, laikós, vale dizer, homem indistinto da massa do povo. Sempre fui, e continuo sendo, pela manutenção e ampliação da saudável laicidade nos assuntos estatais.

Lamento, no entanto, a enorme confusão terminológica que existe no particular, especialmente entre laicidade e laicismo; explico que entendo este último como a exclusão, a priori, da legitimidade dos argumentos de ordem religiosa nas discussões do interesse público. Isso, creio, é intolerância.

É saudável e democrático que as discussões, na esfera pública, admitam os argumentos teístas, deístas, agnósticos e ateístas, uma vez que o povo está composto por pessoas que professam todas estas posições.

Defender, portanto, em nome de um "laicismo" mal compreendido, que os teístas e os deístas não têm o direito de participar das discussões públicas como são, ou seja, como teístas e deístas, não é defender a laicidade estatal, mas restringir a própria democracia, o que não está de acordo com o nosso sistema constitucional.

Sobre isto, há um excelente artigo, que reflete um debate de Christopher Tollefsen sobre as posições de John Rawls e de Habermas (este último me surpreendeu...), exatamente sobre a discussão de interesses públicos e a legitimidade da participação dos cidadãos que professam princípios religiosos. Foi um excelente professor quem me passou este artigo, talvez o melhor professor de direito constitucional do país, hoje. Sei que você lê bem em inglês, se quiser eu disponho desse artigo para te emprestar.

Quanto à laicidade, assim entendida como a desvinculação recíproca entre a autoridade política e a autoridade religiosa, não vejo como poderia ser de outra forma. A César o que é de César. A Deus o que é de Deus.

E, por fim, quanto ao que creio, começo por uma ressalva: dizer "creio em Deus" é não dizer nada, como a recente campanha publicitária da tua associação ATEA mostrou (no cartaz que aponta Hitler como um pretenso "Crente em Deus" e Charles Chaplin como ateu). Acertaram na mosca.

Só erraram na conclusão do raciocínio: não se pode, desse cartaz, concluir: "não creia em Deus", senão apenas "não creia no deus de Hitler, antes prefira o exemplo de Chaplin, no modo como conduziu a sua vida". Não vejo como nenhum cidadão de bem poderia discordar disso, crente ou não, se fosse colocado assim.

Mas isso não é novidade, a Bíblia já fazia uma consideração semelhante: até os demônios crêem em Deus, diz a Bíblia. E estremecem (Tg 2, 19).

Por isso, não se trata de "crer em Deus", pois o diabo, a seu modo, crê com muito mais certeza do que eu. Mas não se ajoelha.

Trata-se, portanto, de viver, de conduzir sua própria vida, no inefável amor da Trindade Santa, como revelada historicamente por Jesus Cristo. Em suma, as melhores palavras para expressar o conteúdo da minha fé (fides quae) estão no credo apostólico, como preservado e ensinado pela Igreja, e o que ela significa para a minha vida (fides qua) está em ser absolutamente viciado no amor de Jesus Cristo, que me foi dado, por graça, experimentar.

Espero ter respondido.

Abraços.

sábado, 30 de julho de 2011

Acampanha pública da Associação de Ateus

Conversar com o meu colega ateu é sempre interessante. Para mim, ao menos. Não sei se para ele. Na verdade, algumas vezes ele se irrita quando eu o ponho no canto, ou aponto uma contradição em seu pensamento, que ele não quer admitir, e se irrita comigo pelo simples fato de que eu aponto tal contradição. Depois, ele fica achando que eu sou preconceituoso, que não aceito o ateísmo dele, e ele se sente discriminado ou combatido por ser ateu.
Isso não é verdade. Sinceramente, eu sempre converso com ele querendo aprender, querendo chegar à verdade, não querendo vencer. Não se trata de vencer ou perder a discussão, mas de uma busca honesta pela verdade, que ele nem sempre está aberto para seguir até o fim.
Na verdade, algumas vezes eu tenho a sensação de que o ateísmo dele envolve a deliberação de viver sem ter que ser responsável perante nenhum deus. Trata-se de não reconhecer nenhum poder capaz de exigir-lhe responsabilidade, fora de si próprio. E isto é uma das coisas em que eu acho que ele se engana. Pode ser que eu tenha a sensação de que ele está em guerra com a ideia de deus, mas não com o próprio Deus. Aliás, eu tenho a impressão de que ele não faz a menor ideia de quem é Deus de verdade. Deus é amor, Deus não é despotismo.
É claro que dizer que Deus é amor não torna a nossa relação com ele mais simples. Não se pode deixar de anotar que o verdadeiro amor é exigente, e há quem prefira viver longe do amor do que atender às suas exigências. Em todo caso, o problema é que a discussão sobre ateísmo sempre começa com uma certa sensação de que ele, o meu amigo, começa sentindo-se intelectualmente superior a mim, que sou crente, e sempre acaba se impacientando porque, usando apenas argumentos racionais, eu o pego em contradição, mas ele nunca quer admitir que eu o apanhei em contradição. É neste momento que ele se refugia no argumento de que há premissas religiosas escondidas em minha argumentação – que ele nunca consegue apontar objetivamente- e me acusa de visão estreita e intolerância, e acaba a discussão.
Ontem isso aconteceu de novo. A Associação de Ateus a qual ele é filiado (filiou-se recentemente e fez muito alarde disso) começou uma campanha pelo ateísmo. Um dos cartazes mostra imagens de Buda, Jesus, Shiva e outros “deuses” e uma frase que diz: “somos todos ateus do deus de alguém”. Ele me ligou:
- E agora? Você viu esse cartaz? Você não pode ter resposta a este argumento, porque você, outro dia mesmo, citou aquele pensador francês católico, Jean Guitton, que escreveu a mesma coisa! Todo teísta também é ateu do deus de alguém.
- Não, não é verdade, não foi isso que Jean Guitton disse. Ele disse apenas que ele era ateu dos falos deuses dos outros. Mas não é verdade o que o cartaz da sua campanha diz.
- Como assim?
- Na verdade, somente um monoteísta, como Jean Guitton, pode alardear-se ateu dos deuses dos outros. E ele o faz, é claro, como um recurso de retórica. A rigor, o que ele estava dizendo era: uma vez que creio apenas no único Deus verdadeiro, afirmo categoricamente que todos os outros deuses são falsos, e que adorá-los é idolatria. Mas um politeísta, como por exemplo um seguidor da umbanda ou mesmo desse hinduísmo de boutique que se propaga dentre os frequentadores de aulas de ioga jamais iria dizer ou sustentar ser ateu do deus de alguém. E a rigor eles não são: eles creem simultaneamente em todos os deuses. Portanto, seu cartaz não está certo nem sequer quanto ao pressuposto.
- Qual pressuposto?
- De que todos somos ateus do deus de alguém. Isso não é verdade. Veja, por exemplo, o discurso de São Paulo aos atenienses, em Atos 17. O texto descreve os atenientes como “muito religiosos”, e eles tinham um altar até “ao deus desconhecido”, ou seja, eles louvavam os deuses que conheciam e, por via das dúvidas, louvavam até os que desconheciam. Certamente os atenienses de então não eram ateus do deus de ninguém. E este é o mal de muitos dos nossos cristãos de hoje: são crédulos demais, acabam na idolatria.
- Ainda assim – prosseguiu o meu amigo ateu – a existência e a proliferação de religiões mostra claramente que cada um acredita que o seu próprio deus é verdadeiro, o que me impede de acreditar que qualquer um deles exista de fato. Você só crê no deus cristão porque é cristão, se você fosse árabe acreditaria em Allah, ou se fosse indiano, em Brahman. Eu, que sou mais racional, considero todos falsos.
- Mas tampouco há fundamento racional para isso. O texto do seu cartaz, ademais de estatuir uma falsidade, como eu já expliquei, ele não permite de forma nenhuma chegar à conclusão que você está chegando.
- Como assim?
- Bom, da multiplicidade de cultos e religiões excludentes entre si não se pode concluir pelo falsidade de todos.
- Bom, mas cada um acha que o outro é falso, portanto eles não podem ser simultaneamente verdadeiros.
- Sim, é verdade. Mas do fato de que eles não possam ser simultaneamente verdadeiros não decorre que eles sejam simultaneamente falsos. Isso é má lógica. Seu ateísmo, se estiver fundado nessa conclusão, está fundado em péssima lógica, desculpe-me.
- Você é mesmo preconceituoso, não dá para discutir com você - o meu amigo sempre diz isso quando não tem mais argumentos.
- Mas não sou eu quem está fazendo uma campanha publicitária grandiosa e falaciosa. Veja quanta gente simples vai perder a fé por causa de um argumento torto e falso, simplesmente por não ter formação filosófica. Aí é o problema: não sou eu o mistificador.

sexta-feira, 29 de julho de 2011

Ateísmo e credulidade

A um colega que declarou-se publicamente como um "ateu militante, filiado a uma Associação de Ateus", encaminhei a seguinte mensagem:

Amigo,

Parabéns pela coerência, coragem e franqueza no debate.

Esta é a única luta que realmente vale a pena, a busca honesta, corajosa e franca pela verdade, esteja ela onde estiver. E a coragem para ir até onde a busca pela verdade nos levar. Um dos grandes problemas com a busca da verdade não é encontrá-la, o que é relativamente fácil, mas é o de não sair correndo para o outro lado ao se deparar com ela. Seguir a verdade onde ela nos levar não é para os covardes.

Conhecendo-o já há algum tempo, e pelas tuas atitudes que acompanhei, registro que vejo-o como um homem profundamente amoroso e absolutamente refratário para com qualquer tipo de hipocrisia. E um ateu que ama e que busca sinceramente a verdade é de se louvar e admirar.

Seria bom, creio eu, que muitos dos autodeclarados "cristãos" fossem um pouco mais ateus.

De minha parte, sou ateu do deus da "new age", do deus de Nietzsche, do deus de Marx e de Gramsci, do deus de Freud, do deus de Kardec, do deus de Aleister Crowley, dos deuses do Rock, do deus dos estóicos, dos epicureus e dos sofistas, do deus de Spinoza (não o Alexandre, claro, mas o Baruch), do deus de Hegel e de Renan.

Sou ateu do deus de Boff, do deus de Edir Macedo, do deus de Kinsey, de Shere Hite, de Margaret Sanger e Margaret Mead, do deus de Maquiavel, de Hobbes e de Rousseau, do deus de Saramago, do deus de Paulo Coelho e do deus de Dawkins (o tal deus "gene egoísta"), só para mencionar alguns que me ocorrem agora.

Destes deuses sou um ateu jubilante, um ateu ímpio, uma ateu praticante e militante. Aliás, tenho uma profunda repulsa pela credulidade. Porque acredito sincera e honestamente que o mal do nosso tempo não é o ateísmo, mas a credulidade.

Parabéns e continue no caminho, na verdade e no amor.

quinta-feira, 24 de março de 2011

Pena de morte e Igreja Católica

O direito penal brasileiro não conhece penas de morte, por ordem constitucional. Está no art. 5º da Constituição Federal no inciso XLVII, letra “a”. A única exceção, em nosso país, para que se admita a pena de morte é quando o Brasil está em guerra declarada. Assim, quando o Brasil declara oficialmente guerra a outro país, a pena de morte pode ser aplicada aos que traírem o país, por exemplo, prestando serviço nas forças armadas das nações em guerra contra o Brasil (art. 355 do Código Penal Militar) ou praticar sabotagem (art. 356) ou espionagem (art. 359). Felizmente, há muito tempo o Brasil não declara guerra a ninguém, e esperamos, com a graça de Deus, que jamais o faça.
A doutrina constitucional lembra que a Constituição brasileira, “no inciso XLVII, consagra que não haverá penas de morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX, da Constituição, de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento ou penas cruéis”. ( Mendes, Gilmar Ferreira et alli, Curso de Direito Constitucional. 4ª Edição atualizada até a EC 57/2008. São Paulo, Saraiva, 2009. Pág. 648).
No mundo jurídico, a publicação "A Constituição No Atual Entendimento Dos Tribunais Federais" ( VVAA, Brasília, Diedi/TFR1, Agosto de 2009, pag.99) transcreve uma decisão do Supremo Tribunal Federal que chama a atenção para o fato de que o repúdio à pena de morte pelo Estado brasileiro é tão forte que se estende aos estrangeiros cuja extradição venha a ser solicitada por qualquer Estado estrangeiro. A extradição somente é concedida pelo Brasil se o Estado estrangeiro se comprometer a não aplicar a pena de morte ao extraditando. O Supremo Tribunal Federal, diante do pedido de um país estrangeiro para que o Brasil extraditasse um súdito estrangeiro, a fim de que ele sofresse pena de morte em outro país, assim decidiu:

E M E N T A: EXTRADIÇÃO - REPÚBLICA POPULAR DA CHINA - CRIME DE ESTELIONATO PUNÍVEL COM A PENA DE MORTE - TIPIFICAÇÃO PENAL PRECÁRIA E INSUFICIENTE QUE INVIABILIZA O EXAME DO REQUISITO CONCERNENTE À DUPLA INCRIMINAÇÃO - PEDIDO INDEFERIDO. PROCESSO EXTRADICIONAL E FUNÇÃO DE GARANTIA DO TIPO PENAL. - (...). EXTRADIÇÃO, PENA DE MORTE E COMPROMISSO DE COMUTAÇÃO. - O ordenamento positivo brasileiro, nas hipóteses em que se delineia a possibilidade de imposição do supplicium extremum, impede a entrega do extraditando ao Estado requerente, a menos que este, previamente, assuma o compromisso formal de comutar, em pena privativa de liberdade, a pena de morte, ressalvadas, quanto a esta, as situações em que a lei brasileira - fundada na Constituição Federal (art. 5º, XLVII, a) - permitir a sua aplicação, caso em que se tornará dispensável a exigência de comutação. O Chefe da Missão Diplomática pode assumir, em nome de seu Governo, o compromisso oficial de comutar a pena de morte em pena privativa de liberdade, não necessitando comprovar, para esse efeito específico, que se acha formalmente autorizado pelo Ministério das Relações Exteriores de seu País. A Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas - Artigo 3º, n. 1, "a" - outorga à Missão Diplomática o poder de representar o Estado acreditante ("État d'envoi") perante o Estado acreditado ou Estado receptor (o Brasil, no caso), derivando, dessa eminente função política, um complexo de atribuições e de poderes reconhecidos ao agente diplomático que exerce a atividade de representação institucional de seu País. (...) (STF, Ext. 633/CH. Rel Min. Celso de Mello. DJ 06-04-2001 PP-00067 EMENT VOL-02026-01 PP-00088)


E quanto à questão moral e religiosa, o catecismo da Igreja Católica admite a pena de morte em situações extremas, não como um fim em si mesma, mas como um meio para salvaguardar a vida dos outros. Ou seja, trata-se de um caso extremo de legítima defesa social, que só é moralmente admissível se presentes diversos requisitos: 1. A comprovação cabal da identidade do agressor injusto; 2. A determinação plena da sua responsabilidade. 3. Que esta seja a única via praticável para defender a vida humana contra o agressor injusto.
Mas, diz o Catecismo, se os meios incruentos (quer dizer, aqueles que não envolvem o derramamentto de sangue do agressor) bastarem para defender as vidas humanas contra o agressor e para proteger a ordem pública e a segurança das pessoas, a autoridade se limitará a esses meios, porque correspondem melhor às condições concretas do bem comum e estão mais conformes à dignidade da pessoa humana.
Na prática, a Igreja ensina que, com o desenvolvimento da tecnologia e o fortalecimento das instituições estatais, há raríssimos casos nos quais a pena de morte seria justa, hoje em dia. O Vaticano está empenhado numa campanha mundial pela moratória às penas de morte.
Diz o Catecismo a esse respeito:

2263 A legítima defesa das pessoas e das sociedades não é uma exceção à proibição de matar o inocente, que constitui o ho­micídio voluntário. "A ação de defender-se pode acarretar um duplo efeito: um é a conservação da própria vida, o outro é a morte do agressor. Só se quer o primeiro; o outro, não."
2264 O amor a si mesmo permanece um princípio fundamental da moralidade. Portanto, é legítimo fazer respeitar seu próprio direito à vida. Quem defende sua vida não é culpável de ho­micídio, mesmo se for obrigado a matar o agressor: Se alguém, para se defender, usar de violência mais do que o necessário, seu ato será ilícito. Mas, se a violência for repelida com medida, será lícito... E não é necessário para a salvação omitir este ato de comedida proteção para evitar matar o outro, porque, antes da de outrem, se está obrigado a cuidar da própria vida.
2265 A legítima defesa pode ser não somente um direito, mas um dever grave, para aquele que é responsável pela vida de outros. Preservar o bem comum da sociedade exige que o agressor seja impossibilitado de prejudicar a outrem. A este título os legítimos detentores da autoridade têm o direito de repelir pelas armas os agressores da comunidade civil pela qual são responsáveis.
2266 Corresponde a uma exigência de tutela do bem comum c esforço do Estado destinado a conter a difusão de comportamentos lesivos aos direitos humanos e às regras fundamentais de convi­vência civil. A legítima autoridade pública tem o direito e o dever de infligir penas proporcionais à gravidade do delito. A pena tem como primeiro objetivo reparar a desordem introduzida pela culpa, Quando essa pena é voluntariamente aceita pelo culpado tem valor de expiação. Assim, a pena, além de defender a ordem pública c de tutelar a segurança das pessoas, tem um objetivo medicinal: na medida do possível, deve contribuir à correção do culpado.
2267 O ensino tradicional da Igreja não exclui, depois de com provadas cabalmente a identidade e a responsabilidade de culpado, o recurso à pena de morte, se essa for a única via praticável para defender eficazmente a vida humana contra o agressor injusto. Se os meios incruentos bastarem para defender as vidas humanas contra o agressor e para proteger a ordem pública e a segurança das pessoas, a autoridade se limitará a esses meios, porque correspondem melhor às condições concretas do bem comum e estão mais conformes à dignidade da pessoa humana.

A Igreja Católica «vê com grande esperança a mobilização internacional que tem como objetivo final cancelar a pena capital de todos os ordenamentos jurídicos e estatutários». Dando uma entrevista sobre o assunto, Dom Agostino Marchetto, secretário do Conselho Pontifício para a Pastoral dos Migrantes e Itinerantes, esclareceu que "Para a Igreja, acrescentou o prelado, a vida humana é «sagrada» desde a concepção até a morte natural, segundo o «projeto divino de uma civilização do amor e da vida». Frente a isso, «a pena de morte aparece cada vez mais como um instrumento inaceitável, além de inútil e daninho», explicou. «Por isso, o magistério católico, que ilustrou o valor da vida como fundamento de toda a sociedade, condena de forma aberta e humilde, porém com firmeza, a pena capital». Contudo, diz ele, a Igreja «é consciente da complexidade desta questão e da necessidade de proceder com decisão e gradualidade». (Permalink: http://www.zenit.org/article-19604?l=portuguese "Santa Sé é contra pena de morte, recorda Dom Marchetto", consulta em 24/03/2011).

Não há razão, portanto, para se imaginar que um bom cristão deve defender a pena de morte. Ela não é uma maneira eficaz de combater o crime, nem uma solução moral ou jurídica (salvo em casos extremos) para defender socialmente a vida humana.

quarta-feira, 23 de março de 2011

Dons extraordinários

O texto está circulando em diversos blogs pela internet, mas resolvi trazer até aqui porque expressa como me sinto, muitas vezes, na Igreja, quando defrontado com fenômenos carismáticos como a "fala em línguas", o "repouso no Espírito Santo" e os aplausos no meio da missa. Não sei quem é o autor, mas o texto é assim:
"Foi apresentada no Teresianum uma revolucionária tese sobre os fenômenos místicos extraordinários do início do século XXI. Como se percebe, a cura pastoral das pessoas que possuem esses fenômenos se torna cada vez mais difícil. Em alguns casos, alguns fiéis que possuem esses carismas se sentem fora da Igreja Católica, pois se trata de coisas extraordinárias, por isso, cada vez mais raras.

Apresentamos alguns desses dons extraordinários:

1. Rezar sem sentir nada: São aqueles fiéis que mesmo sem sentir nenhuma consolação perseveram nas práticas de piedade que recebem da Igreja;

2. Rezar sempre as mesmas coisas: São aqueles fiéis que embora cultivem um trato pessoal com Deus, se guiam, na maior parte das vezes, por orações já conhecidas;

3. Não ter locuções interiores que lhes façam ter a certeza de que estão no caminho certo: são os fiéis que precisam arriscar quando querem fazer a vontade de Deus;

4. Aceitar as doenças e contrariedades em geral: trata-se de um grupo cada vez menor, que, embora não queira sofrer, aceita as contrariedades por amor a Deus e ao próximo;

5. Cultivar o silêncio e a ordem sobretudo dentro da Igreja: são os fiéis que vêem de algum modo extraordinário que a Igreja é casa de Deus, e que a Missa é um verdadeiro Sacrifício, por isso se sentem misticamente travados na hora de bater palmas ou gritar “huhu”.

Se você possui esses carismas fenomenalmente extraordinários para os nossos dias, não se preocupe, a tese comprovou que você é somente um católico e nada mais.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Ricos de nada

Encontrei com a Ir. Sandra, das Filhas do Puríssimo Coração e Maria, e perguntei-lhe por determinada criança que vive no orfanato pertencente ao instituto desta freira amada. Esta criança, órfã mas com irmãos, está passando por um processo de adoção muito traumático, no qual a juíza está priorizando a sua entrega a uma família de posses, mesmo ao preço de separá-la dos irmãos mais velhos, um dos quais é maior de idade e lhe quer adotar legalmente, mas é pessoa simples e de poucas posses. Enfim, uma situação extremamente dolorida.
A irmã me relatou a situação, inclusive a visão peculiar do judiciário local sobre a questão e como até o Ministério Público tende a acolher o pedido da família abastada, rompendo os laços familiares que a criança tem com os irmãos mais velhos, em prol de um presumível “bem-estar” que a família adotiva lhe pode proporcionar.
Em visita à criança, a irmã, perguntando-lhe se ela estava gostando do novo lar, ouviu a seguinte resposta:
- Irmã, eles são muito pobres. A única coisa que eles têm é dinheiro.
Puxa vida, fiquei maravilhado com essa resposta, não podia deixar de registrá-la. Que sensibilidade profunda tem essa criança. Deus a abençoe.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

O pecado original e o fundamento do ordenamento jurídico

Para compreender o homem, precisamos de uma antropologia completa e correta. Quer dizer, dois movimentos experimentais são necessários: o primeiro é deduzir uma antropologia a partir da própria observação humana, e a outra, a partir dessa antropologia, deduzir-lhes as consequências, a fim de testar a sua consistência.
Por isso, uma antropologia que não dê conta da questão do sentido da vida humana é inaceitável. Sem admitir que a nossa vida tem um sentido, somos os mais infelizes dos animais, porque somos os únicos animais capazes de perquirir sobre o nosso próprio sentido de vida. Vale dizer, se temos a capacidade de questionar sobre o nosso sentido de vida, mas a nossa vida não tem nenhum sentido discernível, somos malditos. Essa me parece, aliás, ser uma das raízes da epidemia de “depressões” que vivemos. Não estou diagnosticando, nem sequer afirmando categoricamente, mas apenas especulando, com base, dentre outros, no pensamento do grande escritor Viktor Frankl, que aponta a necessidade de sentido como o fator mais importante para o equilíbrio psicológico do homem. Ora, uma antropologia que parte da falta de sentido, sem explicar, por outro lado, por que é que a busca do sentido é uma das características da própria identidade humana, condena o homem à depressão irremediável, e isso me parece incabível.
Neste aspecto, precisamos conhecer e aprofundar a antropologia cristã. Nela, partimos do chamado, feito por Deus ao homem, de participar da vida divina, chamado que foi denominado teologicamente de “justiça original”. Mas, por uma transgressão livre e pessoal do plano divino, o homem torna-se réu de culpa, perdendo por isso a graça da filiação.
Quero explicar que estou utilizando a expressão “justiça” com seu conteúdo teológico de amizade com Deus, de conformidade amorosa com os seus planos e confiança irrestrita no seu amor. Esta é a condição original do homem, da qual temos uma nostalgia indelével em nossos corações.
É bom ressaltar que o homem não é naturalmente filho de Deus. Vale dizer, a filiação divina é um dom, algo que está além e acima da natureza humana. Assim, como dom, pode ser perdido, por escolha livre, voluntária e responsável do homem. Bom, a doutrina do pecado original ensina-nos que foi exatamente isto que aconteceu. Uma escolha livre, voluntária e responsável fez que o primeiro homem, criado em plena justiça e agraciado com a filiação inefável, perdesse essa adoção. E essa condição despojada da justiça original é transmitida individualmente a cada um dos descendentes do primeiro homem. Isso é o que teologicamente se chama de “pecado original originante”.
Bom , desprovidos dessa justiça original, somos como um grande aparelho sem manual de instrução. Já não sabemos o que somos, nem qual o sentido da nossa vida de modo claro e estreme de dúvidas. Assim, a própria condição de portadores de uma natureza ferida por tal queda somente ser-nos-ia clara à luz da morte e ressurreição de Cristo. É preciso conhecer Cristo como fonte da graça, para conhecer Adão como fonte do pecado. Vale dizer, somente em Jesus Cristo nós contemplamos um homem que se conhece plenamente e se conforma integralmente à justiça, vale dizer, ao plano amoroso de Deus. Somente comparando quão distantes nós estamos do modelo de homem revelado em Jesus é que temos noção da profundidade do pecado original em nós. E essa comparação não é possível pelas simples forças de nossa natureza, mas apenas como dom da graça. A nossa natureza ferida é capaz de querer esse bem, quer dizer, de querer comparar-nos com a perfeição absoluta do homem, mas é incapaz de conhecer integralmente o modelo, de conhecer integralmente a si mesmo e de, apenas por suas próprias forças, adaptar sua conduta a esse modelo. É nesse sentido que São Paulo, na Epístola aos Romanos, expressa sua dor:
“15 Não entendo, absolutamente, o que faço, pois não faço o que quero; faço o que aborreço. 16 E, se faço o que não quero, reconheço que a lei é boa. 17 Mas, então, não sou eu que o faço, mas o pecado que em mim habita. 18 Eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita o bem, porque o querer o bem está em mim, mas não sou capaz de efetuá-lo. 19 Não faço o bem que quereria, mas o mal que não quero. 20 Ora, se faço o que não quero, já não sou eu que faço, mas sim o pecado que em mim habita. 21 Encontro, pois, em mim esta lei: quando quero fazer o bem, o que se me depara é o mal.”
Neste sentido, um homem plenamente conformado a Jesus é um homem que não precisa de um ordenamento jurídico para realizar o plano de perfeição e amor de Deus para a humanidade. É por isso que o próprio São Paulo afirma tanto que não é a lei que salva, mas a graça. Somente a graça permite que eu contemple a perfeição de Jesus, a minha própria imperfeição, e que eu deseje profundamente assemelhar-me a ele, reconhecendo que sou incapaz para tanto apenas pela força da natureza, e implore a ajuda de Deus para aperfeiçoar-me. Para o homem que vive em tal graça, a lei é útil, como são úteis os sinais de trânsito para os que têm um ponto de destino, mas não é salvífica, como uma sinalização de trânsito não pode lhe fornecer um objetivo, um ponto de chegada, um destino final.
É o Espírito Santo, enviado por Jesus Cristo Ressuscitado, aquele que nos permite conhecer o pecado em nós e a santidade em Jesus, bem como a culpabilidade do mundo a respeito do pecado (Jo 16,8), ao revelar-nos Jesus como redentor.
A lei, portanto, é necessária para uma humanidade que vive sem a graça, e importante para os que, embora vivendo na graça, sentem ainda em si os efeitos do pecado original. Mas não é suficiente para devolver-nos a perfeição perdida.
Neste sentido, o conhecimento da realidade do pecado original é o reverso da Boa Nova de que Jesus é o salvador de todos os homens. Todos têm necessidade de salvação, porque todos foram maculados por esta mesma condição humana, maculada e decaída, transmitida pelos nossos pais comuns. Por isso é que se pode falar de uma ”solidariedade” do ser humano no pecado, na medida em que essa condição é compartilhada por todos, indistintamente.
O relato da queda dos nossos pais comuns utiliza-se de uma linguagem imagética para afirmar um acontecimento primordial, um fato que ocorreu no interior da história humana, mais precisamente nos seus inícios, de modo a condicionar todos os acontecimentos posteriores. A revelação dá-nos certeza, pela fé, de que toda a história humana está marcada pelo pecado original cometido livremente por nossos pais.
Falando de fé, poderíamos falar dessa força sinistra que está por trás da desobediência dos nossos primeiros pais. Trata-se de uma inteligência agente, cujos efeitos tantas vezes vemos atuando na história humana de modo maléfico e sistemático. Aquilo que chamamos de “anjo destronado”, ou seja, uma pessoa, optou livremente por rejeitar, de modo completo, radical e irrevogável, a Deus e seu Reino. Mistério da iniquidade. Falar da árvore do bem e do mal e da opção irrevogável dos anjos – e dos homens após a morte – é importante, não por qualquer sedução maléfica, mas porque essas realidades são essenciais para se conhecer o tamanho do amor de Deus por nós. Somente uma liberdade que chega ao ponto de permitir uma irrevogável opção contra Deus pode ser considerada uma liberdade subsistente e real, na criatura. Sim, porque, se fôssemos livres para tudo, menos para optar pela rebeldia contra o Criador, tampouco seríamos livres para amá-lo por pura escolha. Constrangidos a amá-lo, jamais chegaríamos a amar de verdade, por um movimento nosso em direção a ele. Somente pode haver paraíso, para os seres livres, quando há uma árvore proibida, nesse paraíso. Senão, sem poder escolher contra Deus, eu jamais seria livre para escolher Deus. Sem poder escolher Rejeitar a Deus total e irrevogavelmente, tampouco se poderia amar a Deus total e irrevogavelmente. Somente a possibilidade de existir Satanás torna possível existir Maria.
Mas o mal não é um ser. Explico-me. Satanás é uma pessoa, poderoso porque é puro espírito, mas a sua maldade não é um ente. A maldade é a privação de um bem esperado. A privação não é uma coisa, mas a falta de algo.
Voltemos ao homem. Essa criatura de Deus tem duas características fundamentais: é a imagem de Deus e foi criado em amizade com Ele. Deus não é uma imagem antropomórfica idealizada: ao contrário, o homem é teomórfico.
Mas, no seu ser de criatura, o homem somente poderia viver essa amizade a Deus pela livre submissão ao seu criador. Senão o homem já não seria um amigo, mas um escravo, ou pior, um bichinho de estimação ou um robô. Assim, a imagem da árvore do conhecimento do bem e do mal evoca simultaneamente o limite intransponível que o homem deve respeitar, como criatura livre, bem como a confiança e a liberdade com que se aproxima de Deus, a fidelidade que toda amizade pressupõe, enfim. A existência de um limite para o homem, no centro do próprio paraíso, é o marco da abariedade, do respeito à lei da criação e do reconhecimento, por parte do ser humano das normas morais que regem a liberdade.
Tentado, no entanto, o homem deixou morrer em seu coração a confiança no seu criador e, abusando da liberdade, desobedeceu ao mandamento de Deus. Por isso, o primeiro pecado foi a desobediência. Todo pecado, daí por diante, será, no fundo, uma desobediência e falta de confiança na bondade divina. O ser humano, no pecado, tira Deus do centro e põe ali a si mesmo. Trata-se de rejeitar a deificação como dom, para elevar-se, sem Deus, à autodeificação, antepondo-se ao criador.
As consequências do pecado original são graves, e são evidentes para todos. Perdida a graça de santidade original, surge o medo de Deus. Note-se que o temor de Deus é uma virtude, mas o medo de Deus, não. O medo de Deus faz com que as pessoas tornem-se adversários de Deus. Cria-se uma imagem falsa de um deus ciumento de suas prerrogativas, um adversário do ser humano, e contra essa imagem o homem passa a combater Deus.
A harmonia da graça original foi destruída. O domínio das faculdades espirituais da alma sobre o corpo é rompida. Surge algo como uma “sombra” na realidade espiritual do homem, que os psicanalistas chamarão de id, subconsciente, duplo, enfim, toda essa nomenclatura que se usa para descrever a vida espiritual que decorre sem controle nas camadas mais profundas da psique humana. A união entre homem e mulher sofre tensão, está submetida à cupidez e à dominação. A harmonia com a natureza fica lesada, e o homem passa a ser um estranho frente a uma natureza hostil e submetida à servidão da corrupção. Graças ao pecado, a morte entra na história humana.
O pecado de nossos primeiros pais inunda o mundo. Somos todos filhos desses mesmos pais humanos, somos “solidários em Adão”, ou seja, solidários no pecado. Mas essa, como sabemos, não é a última palavra. Pois somos capazes de Deus, ou seja, de receber a salvação universal em Jesus.
A imensa miséria que oprime os homens e sua inclinação para o mal são incompreensíveis sem esta noção do pecado original e de sua transmissão por propagação. Expliquemo-nos. O gênero humano inteiro é, em Adão, como que um só homem. Assim, independentemente de culpa pessoal, estamos todos implicados no pecado do primeiro casal; a boa notícia é que, independente de mérito, estamos também todos implicados na justiça de Cristo. A diferença é que, embora Cristo tenha proporcionado objetivamente a salvação para todos os homens, somos livres para rejeitá-la, porque, se o pecado original transmite-se por propagação, a salvação em Cristo depende de adesão. Ou, como dizia Santo Agostinho: Deus, que te criou sem ti, não quer te salvar sem ti. Em Cristo, portanto, abre-se para nós a vida, como em Adão abriu-se a morte pela desobediência.
A transmissão do pecado original é um mistério. Não entendemos plenamente esse processo. Tive um querido professor que costumava dizer: mistério não é aquilo que não se entende, mas aquilo que não se esgota. O fato é que o pecado original não tem caráter pessoal. Não é uma culpa. É uma condição: é como se o molde de uma fábrica de bonequinhos de plástico adquirisse um pequeno defeito, e todos os bonequinhos produzidos ali saíssem com esse mesmo de feito. O pecado original é, no campo da graça, a privação da santidade e da justiça originais. No campo da natureza é a natureza humana lesada, mas não completamente corrompida. Somos capazes do bem natural. Mas estamos submetidos à ignorância, ao sofrimento, à morte, e inclinados ao pecado. Mas essa inclinação não é total nem irreversível, porque senão seríamos irresponsáveis perante Deus e perante os outros.
Como breve parêntese, eu diria que o batismo apaga o pecado original, mas não suas consequências sobre a natureza humana enfraquecida. Continuamos com a natureza lesada, sujeita à dor e à doença, à ignorância e à morte, bem como à concupiscência, que é a inclinação para o pecado. A persistência dessas consequências nos incita ao combate espiritual.
É interessante lembrar a discussão sobre o pecado original ao longo da história da Igreja. Pelágio da Bretanha, escritor antigo (cerca de 360-435), sustentava que o homem podia, pela força de sua vontade livre, sem a ajuda da graça de Deus, levar uma vida moralmente boa. Para ele, Adão era só um mau exemplo. Pelágio teve suas posições fortemente refutadas por Santo Agostinho, em obras ainda hoje importantíssimas para a correta compreensão da doutrina da Igreja.
Os primeiros reformadores partiram para o extremo oposto, com relação ao pelagianismo. Defendiam que o pecado original teria pervertido completamente a natureza humana, e a liberdade teria ficado anulada por ele. O pecado herdado seria uma insuperável tendência para o mal: haveria uma identidade entre concupiscência e pecado. Isso comprometeria, também, qualquer doutrina jurídica: naturalmente incapazes para o bem, somos também absolutamente incapazes de legislar bem. É só pensar um pouco para perceber as consequências dessa doutrina para uma teoria do direito. Tanto se pode justificar, por ela, o totalitarismo teocrático, em nome da incapacidade natural humana de se governar, quanto a autonomia absoluta e a anarquia, em nome do mesmo princípio. Imagino que não seria difícil negar qualquer consistência aos direitos naturais e aos direitos humanos, à possibilidade de uma ética racional ou até mesmo a quaisquer reconhecimentos de valores estritamente naturais ou humanos. Uma visão da natureza humana como totalmente corrompida não parece ser o melhor fundamento antropológico para um ordenamento jurídico, do mesmo modo que a santidade natural pelagiana (ou rousseauniana) não é.
É necessário, portanto, um discernimento lúcido sobre a situação do homem no mundo. A partir do pecado original, há, de fato, uma certa dominação do homem pelo diabo, o que é ignorado em determinadas antropologias otimistas, como a rousseauniana, bem como superestimado nas pessimistas, como as predestinacionistas de origem calvinista, causando graves erros na educação, na política, na ação social e nos costumes.
O pecado original, os pecados pessoais e suas consequências conferem ao mundo em seu conjunto uma condição pecadora (Jo 1, 29), que a Bíblia chama de “o pecado do mundo”. Com essa expressão, se bem compreendida, exprime-se também a influência negativa que as situações comunitárias e as estruturas sociais, frutos dos pecados pessoais do homem, exercem sobre os outros homens, induzindo-os ao sofrimento e ao próprio pecado.
A luta incansável contra o poder das trevas é, portanto, parte da realidade da humanidade decaída. Neste espaço é que se encontra a necessidade, premente para o cristão, de influir nos ordenamentos jurídicos positivos. É que, embora não sendo salvíficos em si, eles podem servir de instrumentos para a implementação das estruturas sociais de pecado (imaginemos uma rede de clínicas abortistas, por exemplo). O homem, e em especial o cristão, deve lutar sempre para aderir ao bem, e não o consegue sem grandes esforços e principalmente a graça de Deus, condições necessárias e suficientes para recobrar a unidade interior (e social) perdidas pelo pecado original. Quando essa unidade estiver refeita, tampouco o ordenamento jurídico positivo terá mais qualquer significado ou importância. Estaremos sob a lei do amor.