segunda-feira, 23 de abril de 2012

Faniquitos antieclesiais no STF

Ainda não tive tempo de ler todos os votos do julgamento sobre a anencefalia com cuidado, fiz a leitura superficial. O voto do relator está muito bem escrito, os argumentos são fortes, ele demonstra coragem e sensibilidade com o sofrimento feminino. Conhece a Bíblia e algumas fontes históricas do cristianismo. Faço mais uma vez ponderações longas a respeito das minhas impressões. Vou pinçar apenas um ponto que considero muito preocupante no voto do relator. A questão que ele levanta sobre uma suposta necessidade de "afastar as pré-compreensões confessionais", citando o Min. Celso de Mello. Ele diz: "nesta República laica, fundada em bases democráticas, o Direito não se submete à religião, e as autoridades incumbidas de aplicá-lo devem despojar-se de pré-compreensões em matéria confessional, em ordem a não fazer repercutir, sobre o processo de poder, quando no exercício de suas funções (qualquer que seja o domínio de sua incidência), as suas próprias convicções religiosas." Uma coisa é fazer repercutir no seu agir as suas convicções religiosas, o que é perfeitamente lícito numa democracia; outra é impor aos outros, pelo exercício do poder, tais convicções, o que é bem diferente. No entanto, o relator, citando Celso de Mello, parece excluir mesmo esta "repercussão" estritamente humana dos cidadãos religiosos, como se a liberdade religiosa somente pudesse ser exercida como opção secreta e recôndita, e qualquer coerência, no confessional, da sua fé com a sua prática, fosse ilícita. O que é assustador para os que, como a maioria da população, professam uma confissão que lhes convida exatamente a esta coerência. Neste particular, tive a grata surpresa de ler isto aqui, no voto do Min. Gilmar Mendes: "Essas entidades (cristãs) são quase que colocadas no banco dos réus como se estivessem fazendo algo de indevido, e não estão. É preciso ter muito cuidado com esse tipo de delírio desses faniquitos anticlericais (...) Recentemente, acompanhava o célebre caso dos crucifixos e ficava preocupado com esse tipo de desenvolvimento. Talvez daqui a pouco tenhamos a supressão do Natal do nosso calendário ou a revisão do calendário gregoriano. Ou alguma figura inspirada vai pedir a demolição do Cristo Redentor." (do voto do Min. Gilmar Mendes). Temos, portanto, que tomar o cuidado oposto quanto ao respeito à liberdade religiosa, e acho que este é o maior desafio para nós, cidadãos brasileiros, agora. O cuidado é que não ocorra o tal "despojamento das pré-compreensões confessionais" como pressuposto para qualquer exercício público de cidadania no âmbito das relações institucionais no estado brasileiro, como o voto do relator menciona, citando Celso de Melo. Isto é um conceito que deve ser olhado com cuidado, porque pode comprometer a própria democracia. Talvez seja a passagem que mais me incomodou, no voto, porque marca uma tendência que, levada ao extremo, exclui da possibilidade do exercício da cidadania qualquer cidadão que seja um religioso confessional. Na verdade, ninguém pode se despojar das próprias pré-compreensões sem deixar de ser uma pessoa humana livre, isto já nos demonstrou Heidegger, quando construiu o conceito de vorverständnis (os que sabem alemão me corrijam) na sua hermenêutica. O ser humano, explica Heidegger, é um dasein, quer dizer, é um "ser-aí", é alguém imerso numa cultura e num momento histórico. Não se deve, por um lado, numa democracia, impor ao outro as próprias pré-compreensões, confessionais ou não. Mas não há como se exigir, como quer o voto, a obrigação de despojar uma classe de pessoas de suas pré-compreensões, muito menos as confessionais, como condição para que seja admitido no debate público, ou mesmo para exercer funções públicas, sem estabelecer o totalitarismo. Portanto cada vez que alguém estabelece a necessidade de "despojar alguém de pré-compreensões", quaisquer que sejam, como pressuposto para o exercício da cidadania ou do diálogo democrático, eu estremeço. Trata-se de negar que o outro possa ser ouvido, ou, no limite, que possa sequer existir tal como ele é, no regime democrático. Não há ninguém sem pré-compreensões, salvo os psicopatas, aliás louvados por aquela canção bobinha do Raul Seixas ("eu prefiro ser esta metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo"). Ora, uma metamorfose ambulante é, por definição, um ser com o qual a convivência é impossível, e portanto, uma sociedade de "metamorfos ambulantes" seria uma sociedade profundamente despótica, nunca democrática - quem tem filhos sabe exatamente o que é conviver em casa com uma "metamorfosezinha ambulante" de nove ou dez anos de idade. Então a pergunta - por que somente os que têm pré-compreensões confessionais" têm que se despojar delas para ser admitido ao exercício da cidadania? Um "metamorfo ambulante", um ser absolutamente sem pré-compreensões, torna despiciendo o direito, torna impossível a comunicação, por fim, implode a própria noção de sociedade. Não se constrói a sociedade democrática com a convivência de crianças mimadas. Portanto, é preciso que tenhamos todos pré-compreensões estáveis e reciprocamente leais, e, ao contrário do que diz o voto, (citando celso de Melo), não se pode exigir de nenhum homem que afaste as suas pré-compreensões para que o embate político democrático seja possível. Na verdade, apenas explicitando claramente as nossas pré-compreensões recíprocas é que o debate se torna leal. Quais serão as pré-compreensões confessionais do Ministro relator? Se ninguém sabe, fica impossível, inclusive, verificar se ele está obedecendo à sua própria orientação e despindo-se delas antes de votar. Estou absolutamente convencido de que não há nenhum ser humano sem pré-compreensões religiosas, confessionais ou não. Homens não são anjos, são filhos dos seus tempos, das suas histórias e das suas culturas. São seres-aí, dasein, diz Heidegger. E devem sempre trazê-las, de modo íntegro e expresso, para a sua vida e para o exercício da sua cidadania. Note-se que eu estou afirmando categoricamente que não há seres humanos sem pré-compreensão religiosa, mas não estou de forma nenhuma dizendo que não há pessoas sem confissão religiosa: estes são legião, e são parceiros inestimáveis na convivência democrática. Precisamos dos sem-confissão, e do seu respeito recíproco. Mas ser sem-confissão é, segundo Heidegger, ter também uma determinada pré-compreensão religiosa, livre e inafastável de igual modo. Mesmo o ateu confesso está na mesma situação. Ele tem uma pré-compreensão religiosa, ainda que seja a de que um Deus pessoal e amoroso não existe, embora possam existir, para os ateus, forças absolutas impessoais, como a economia dialética do trabalho (marxistas), um gene egoísta (Dawkins) ou a pulsão sexual (Freudianos). Os agnósticos igualmente têm pré-compreensões religiosas, ainda que sejam não-confessionais, como uma das duas seguintes: ou todas as religiões são igualmente perniciosas, e as devemos eliminá-las indiscriminadamente, ou todas são igualmente importantes, e devemos garanti-las indiscriminadamente. Ambas as pré-compreensões religiosas do homem não confessional são também incompletas e unilaterais no jogo democrático como um todo, porque há outras posições possíveis no campo das pré-compreensões religiosas que devem igualmente ser levadas em conta no debate público com o mesmo grau de seriedade. Ser confessional, numa sociedade democrática, e agir em coerência com isto, sem imposições, mas com integridade, não pode jamais ser um minus, um capitis diminutio, sem que a liberdade religiosa fique ferida. Não se pode exigir, a contrário senso, que meu interlocutor, digamos, ateu ou agnóstico, abandone tais pré-compreensões não-confessionais, com as quais eventualmente não concordo, para que ele esteja apto a iniciar ou participar de um debate público: para abandonar uma de suas pré-compreensões religiosas não confessionais, um ateu ou um agnóstico deveria estar obrigado a adotar uma religião, e isto violaria sua dignidade humana. Ora, o que não pode ser imposto ao não-confessional não pode ser imposto ao confessional! Devemos todos, confessionais ou não, nos esforçar para ouvir e respeitar o outro como ele é. Extrair, dos debates com todas as posições, aquelas fundamentações históricas, científicas, culturais e sapienciais que nos permitam construir a sociedade mais democrática e digna possível num determnado momento histórico, e não se faz isso tolhendo os direitos civis de uma parcela da população - especificamente a parcela majoritária, a confessional. Fazer isto é violar a dignidade do cidadão confessional, a própria liberdade religiosa e transformar o Estado num ídolo, ou seja, trata-se de César exigindo de nós o que em nós é de Deus - a nossa consciência religiosa livremente formada. (Paulo Jacobina)

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Álcool, tabaco e drogas ilícitas

O uso de algumas drogas é proibido no Brasil. As única drogas permitidas são o álcool e o cigarro. Atualmente, há um crescente interesse da sociedade pela discussão acerca da descriminalização das drogas no país. Há quem defenda que as drogas ilícitas são tão drogas quanto as lícitas, e, destes, há quem diga que a solução seria proibir as legalizadas e há quem diga que seria permitir as proibidas. Primeiramente, o álcool surge de um processo natural, que é a fermentação. Frutos como a marula fermentam na própria árvore, e o álcool, ao contrário da maconha, que sempre foi consumida por seus efeitos alucinógenos, era consumido como alimento. Guardava-se o suco de uva num barril e ele fermentava, naturalmente. As bebidas alcoólicas fermentadas surgem de um processo natural de fermentação do suco, no qual as bactérias transformam o açúcar da bebida em álcool. Mesmo nas bebidas destiladas, o processo de obtenção do princípio ativo, o álcool, não se faz pelo mero prazer de se obter os seus efeitos entorpecentes, pelo menos não originalmente. Na Idade Média, as bebidas destiladas eram usadas como analgésicos, pois aliviavam a dor mais eficientemente que a cerveja e o vinho, e, nos países frios, as bebidas eram utilizadas para aquecer as pessoas em estado de hipotermia. Tanto a maconha quanto o cigarro possuem alcatrão, que é tóxico e gera dependência química, e, apesar de a nicotina ser o principal elemento ativo do tabaco, e, na maconha, ser o thc (Tetrahidrocanabinol). A maconha, ao contrário do cigarro, traz alterações psicoativas que o tabaco não produz. O cigarro não produz alucinações, mas, independentemente de quem faz mais mal, ele faz mal à saúde, assim como a maconha. Além de fazer mal aos indivíduos, particularmente, a dependência tóxica faz mal à sociedade. O Auxílio-doença concedido a dependentes químicos preocupa a Previdência Social, pois pessoas, que poderiam estar trabalhando e colaborando com a Previdência, estão debilitadas por causa do uso das drogas e, além de não gerarem riqueza, geram despesas e ocupam leitos nos hospitais. O consumo excessivo de álcool tem efeitos prejudiciais à sáude, mas o álcool originalmente tinha efeitos alimentícios ou medicinais, e podem ser consumidos assim, pois, em quantidades não excessivas, não gera dependência química. Já a maconha era usada por seus efeitos alucinógenos e, mesmo que eventualmente fosse usada para "esquecer a dor", o thc causa dependência química, e o alcatrão é tóxico mesmo em pequenas quantidades. É hipocrisia permitir o tabaco e não a maconha, mas a única solução é legalizar a maconha? Ou restringir, dificultar o acesso ou até proibir o uso do tabaco não seriam também alternativas? (Pedro Jacobina)

Da Verdade

A verdade, do ponto de vista teológico, é tudo aquilo que está de acordo com o plano de Deus. Não porque Deus diz o que é verdade e o que não é, mas, sendo Deus o criador de todas as coisas, as coisas são verdade na medida em que elas correspondem com as coisas criadas por Deus. Analogicamente, a verdade quanto a uma criatura minha, como uma personagem que eu crie, é a conformidade com meus planos sobre ela. Se eu criar um afubsgubsc, o que você disser sobre ele é verdade na medida em que isso corresponde com os meus planos sobre ele. Do ponto de vista filosófico, a verdade pode ser conceituada como "tudo aquilo que permanecerá inalterado se eu tentar negá-lo". A verdade é a adequação da mente à coisa, e não da coisa à mente, salvo quando eu sou a causa eficiente da coisa. As propriedades físico-químicas da massinha são verdadeiras, uma vez que elas dependem da minha observação e abstração da massinha, adequando minha mente à realidade da massinha. Mas, na medida que eu posso modelar a massinha, a verdade dela é a correspondência entre o que ela é de fato e a minha intenção. Se outra pessoa, no entanto, olhar o objeto que eu fiz com a massinha, a verdade é a adequação da mente dele à coisa, pois o meu objeto está ali, e a mente dele que abstrai o que ele experiencia sensorialmente. No momento em que ele remodela a massinha, a verdade dela é, novamente, a correspondência entre o que a massinha é de fato e a intenção dele. As duas definições de verdade são similares, a filosófica com o conceito de causa eficiente para definir o ser que transforma a potência em ato, e a teológica com o conceito de criador, que, para a teologia, é Deus, que criou o Universo, e transforma a potência em ato. Quando criamos algo, fazemo-lo analogicamente à criação de Deus, pois a massinha não é pura potência, ela tem ato, ela existe, tem propriedades. Deus criou tudo a partir do zero, transformou a potência pura em ato. Deus é 'A' verdade, pois ele é puro ato, ele é imutável e estático, ele É, não pode "vir a ser" nada, pois já é completo, perfeito e infinito. O Universo é verdadeiro, na medida em que ele possui ato, que ele é à imagem e semelhança de Deus. Já a matéria pura é inpensável, pois ela é pura potência, ou seja, não é nada por poder ser qualquer coisa. É o Princípio Síndrome: Quando todo mundo for super, ninguém mais será. O que pode ser tudo, acaba não sendo nada. Somente o ato é cognoscível. A verdade é o ato. Deus é 'A' verdade porque ele é 'O' ato. A verdade da massinha é quanto ao ato dela, suas propriedades físico-químicas, mas, quanto ao que você pode moldar a partir dela, não será verdade enquanto você não moldar. A matéria pura não existe, porque pura potência sem ato não é verdade. (Pedro Jacobina)

Em que acredito (Um pequeno resuminho sobre alguns pensamentos)

Não se pode começar a pensar no Universo com a dúvida, tampouco com o "eu". Qualquer discurso tem que ter pressupostos, como eu disse em "Seis dogmas para escrever". Não se pode começar um discurso ou uma discussão se não se acredita em certos pontos, como, por exemplo, que o código é válido e cognoscível e exprime as ideias que foram pensadas com fidelidade. Da mesma forma, antes de começar a falar sobre o Universo, tem que se acreditar em alguma coisa, ter um ponto de partida concreto, absoluto, e esse ponto é Deus. Não se pode tomar como ponto de partida a dúvida, pois, como Santo Anselmo disse: "Eu não procuro compreender para crer, creio para compreender pois não poderia compreender se não acreditasse." O ceticismo absoluto tem que duvidar até da dúvida, e não pode começar nunca um pensamento. É quase como uma criança birrenta, que diz "duvido" para qualquer coisa que falemo-na. Não se pode discutir se não se acredita na verdade, pois a discussão não levaria a lugar nenhum; da mesma forma, não adianta procurar sentido no Universo se se duvida do Universo e até do próprio sentido, pois essa busca não daria resultado algum. Ressalto que "dúvida" aqui se aplica à descrença do cético absoluto, não à dúvida metódica de Descartes, pois Descartes não duvidava de tudo, não da dúvida, pelo menos. Tampouco se pode tomar como ponto de partida a existência do "eu", porque o "eu" não é absoluto e infinito; o Universo não está submetido ao homem, mas a Deus, que é o criador de todo o Universo. Deus, como arkhé da physis, é o maior ser concebível, pois nada está além dEle e nada é anterior a Ele. Se Deus fosse imaginário, ele não seria o maior ser concebível, pois conceber-se-ia um ser que teria, além de todas as qualidades do deus imaginário, mais uma: a realidade. Este Deus real seria, portanto, maior do que o Deus imaginário, o que geraria um absurdo. Deus é a causa primeira, Ele é causa de si próprio, é o único ser absoluto e infinito do Universo, mas não é o primeiro ser em que pensamos quando olhamos para o Universo. Deus não está na natureza, mas, como podemos ver as digitais do artista na escultura de argila ou as pinceladas na tela, podemos ver a mão de Deus ao olharmos para a natureza. A criatura não pode superar o criador, um computador não pode ser maior que quem o projetou, pois tudo que está no computador veio do projetor, mas nem tudo do projetor foi passado para o computador. Da mesma forma, a natureza tem que ser criatura de um ser maior que ela. Se a natureza é organizada, e não um completo caos, o seu Criador tem que ser racional. A natureza não poderia ter fim em si mesma, porque ela foi criada, mas seu Criador sim, pois, como diz Parmênides, o Ser não poderia ter sido criado, pois isso implicaria em outro Ser; nem poderia ter sido criado do nada, pois isto implicaria a existência do Não-Ser. Portanto, o Ser simplesmente é. É, factualmente, difícil aceitar a ideia de eternidade, ainda mais a de Deus, pois, se já é difícil pensar em eternidade para o futuro, muito mais é para o passado. O tempo é criatura, portanto, teve um início, a sua criação. É difícil pensar no infinito para o futuro, mas é impossível pensar no infinito para trás, pelo menos no plano temporal, mas o tempo está aquém de Deus, por ser uma criatura. Deus não "existiu em" ou "existiu a partir de", mas Ele simplesmente existe, Ele não está submetido ao tempo. Nenhum ser em potência se tranforma, segundo São Tomás de Aquino e Aristóteles, em um ser em ato por si só, precisa da intevenção de um ser em ato. Uma matéria prima não pode se tornar um artefato por si só, precisa da intervenção do homem. Deus é o ato puro, ele é imutável, estático, e pode tranformar toda potência em ato, e a matéria é pura potência, ela é mutável, dinâmica, e pode ser tranformada, mas não pode transformar. Tudo no Universo é composto por ato e potência. O ser humano, por ser ato, pode mudar as coisas, e, por ser potência, pode ser mudado. Voltando à natureza, primeiramente nós temos as experiências sensoriais dos seres, para então formarmos nosso conhecimento a partir da abstração das experiências. Nós olhamos a natureza, e pensamos que esta só pode ter sido criada por Deus, e nós só podemos fazê-lo porque sabemos que nossas experiências sensoriais condizem com a realidade em que estamos. Não é possível que tudo seja apenas fruto da minha mente, pois isto significaria que eu teria criado o Universo, portanto eu seria Deus, o que não é verdade, pois eu estou sujeito às leis do Universo. E é certo que as minhas experiências sensoriais condizem com a realidade na qual estou inserido, uma vez que todos nos vemos os objetos nos mesmos lugares, com as mesmas características. Também os seres ditos materiais têm que ser constituídos de matéria, e não de ideia, pois, se a mesa que eu olho fosse um pensamento da minha mente, então ela teria que ser exatamente igual no pensamento de todos. A mesa de fato é a mesma para todos que a olham, mas os seres mais complexos, como um esquilo, não pode ser tudo o que se pensa dele. Se eu tenho uma ideia do esquilo e outra pessoa tem outra ideia, o esquilo não pode ser as duas coisas ao mesmo tempo; princípio da não-contradição. Dizer que a matéria é dependente da minha mente é inconcebível, pois isto implicaria dizer que as outras pessoas também o são, pois a matéria não pode ser dependente da minha mente e da de outrem ao mesmo tempo. E, se as pessoas fossem dependentes da minha mente, eu seria Deus, e isso é impossível. Da mesma forma, dizer que os seres ditos materiais são pensamento da mente de Deus, e não feitos de matéria, seria dizer que estamos todos na mente de Deus, e somos ideias dele, parte dele. Mas não somos, somos criaturas, e somos distintos de Deus, pois somos pessoas, sengundo a definição de Boécio, de que pessoa é uma "substância individual de natureza racional." Ou seja, é algo que existe por si (substância), é distinto dos outros seres (individual) e tem capacidade de agir por si (natureza racional). (Pedro Jacobina)

segunda-feira, 9 de abril de 2012

Os Anencéfalos e a Dignidade Intrínseca da Vida Paulo Vasconcelos Jacobina Procurador Regional da República Mestre em Direito Econômico pela UFBa Há um recente filme americano que conta, de modo bem idealizado, a saga do pornógrafo Larry Flynt. Ali, ele é retratado como um lutador pela liberdade de expressão. “Muito mais que um viciado em pornografia, Larry é um viciado em liberdade”, diz uma das chamadas do filme. O subtítulo da produção cinematográfica é o seguinte: “You may not like what he does, but are you prepared to give up his right to do it?” Em tradução livre, seria mais ou menos: “você pode não gostar do que ele faz; mas está pronto para abdicar do direito que lhe permite fazê-lo?” Há um longo discurso no filme, do advogado de Larry Flynt perante uma das Cortes americanas que julgava se a publicação pornográfica de Larry (a revista Hustler) devia ou não ser protegida pela Primeira Emenda da Constituição Americana, aquela que trata da liberdade de expressão. Dizia o advogado: “No coração da Primeira Emenda está o reconhecimento da importância fundamental do fluxo de ideias. A liberdade para falar o que se pensa não é só um aspecto de liberdade individual, mas essencial no que diz respeito à verdade e a vitalidade da sociedade como um todo. No mundo das discussões de assuntos públicos, muitas coisas são menos admiráveis, mas não menos protegidas pela Primeira Emenda.” Todo o desenvolvimento do filme vai, então, dirigir-se no sentido de ressaltar a baixeza do caráter do seu personagem principal, para provar a tese de que a liberdade de expressão, no limite, existe para proteger a expressão daqueles com quem a maioria não concorda, os sujos, os asquerosos, os não-alinhados, os repugnantes. A defesa da liberdade de expressão não tem vínculo com a qualidade do que está sendo expresso, mas com o direito de manifestar mesmo aquilo que, aos olhos da maioria, não tem mesmo nenhuma qualidade. Em suma, o que se tutela é a liberdade de expressar-se, e não a qualidade de tal expressão. E é exatamente na expressão de pensamento de baixa qualidade – ou sem qualidade nenhuma – que a cláusula constitucional de liberdade de expressão torna-se mais premente. Esta pequena digressão visa apenas estabelecer que a liberdade de expressão, que é tomada em tal amplitude, está fundada num princípio muito mais amplo, o próprio princípio constitucional da dignidade da vida humana. Vale dizer, há a liberdade de expressão exatamente porque se está vivo: não pode se expressar quem não vive. Por outro lado, não há comparação entre a amplitude do princípio da dignidade da vida humana e o princípio da liberdade de expressão. É possível haver uma expressão de pensamento que seja indigna da tutela constitucional. Dou como exemplo o pensamento expresso no anonimato: não se tutela a expressão anônima do pensamento, conforme o art. 5º, IV, da Constituição Federal de 1988. Além disso, a Constituição garante, às pessoas ofendidas pelo mau uso do direito alheio de expressão, o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem, nos termos do art. 5º, V. No que diz respeito à vida, porém, não há possibilidade de tais restrições. Nossa Constituição não conhece uma vida humana que seja indigna em si mesmo. O direito à vida, portanto, não se fundamenta em nenhum tipo de juízo quanto à qualidade mesma da vida que está sendo tutelada. Vale dizer, o nosso direito não tutela a qualidade de vida: tutela a dignidade intrínseca da vida. Podia não ser assim. Há ordenamentos jurídicos que não tutelam a dignidade da vida, mas a qualidade dessa vida. O direito sul africano do apartheid, por exemplo, admitia que determinadas etnias não tinham a mesma dignidade, quanto à proteção da sua vida, que outras: uma vida branca era mais digna, ali, que uma vida de uma pessoa de cor negra. Havia, portanto, uma avaliação intrínseca da qualidade da vida a ser tutelada, para os fins de determinar a sua dignidade. O mesmo acontecia com o direito nazista: determinadas etnias, como a judaica, não eram reconhecidas como dignas da vida. Ou seja, a dignidade da vida, ali, passava por uma avaliação prévia da sua qualidade. Nosso direito não conhece tal avaliação prévia da qualidade da vida para estabelecer a sua dignidade intrínseca. Para nosso ordenamento, aplica-se, portanto, no que diz respeito à tutela do direito à vida, algo que poderíamos chamar de “o princípio Larry Flint”: se não formos capazes de defender a vida aparentemente mais frágil, mais tênue, a que título poderemos proteger todas as outras? Assim, a defesa da dignidade intrínseca da vida dos nascituros anencéfalos é a defesa da vida de todos: trata-se da defesa do princípio da dignidade da vida humana independentemente do questionamento sobre a sua qualidade. Não é a qualidade da vida, se vigorosa ou frágil, se prolífica ou infrutífera, se longa ou breve, se saudável ou doentia, que determina que uma vida humana tenha dignidade. O que determina tal dignidade é a sua existência, e ponto final. Por isso, se estabelecermos que é possível, em nosso direito, sopesar a qualidade da própria vida humana para determinar sua dignidade, e, com isso, estabelecermos que um bebê anencéfalo pode ser morto porque sua vida não tem qualidade, e portanto não tem dignidade, estaremos rompendo um princípio básico de dignidade de vida, a de que esta dignidade é incondicional. Por isso, também para os bebês anencéfalos, nosso direito constitucional deve reverberar o art. 6º da Declaração Universal de Direitos Humanos, que afirma expressamente que “Todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei.”. Vale dizer, os conceitos de “ser humano” e de “pessoa” têm que ter a mesma extensão e a mesma dignidade. Devem atingir a todos os entes humanos, independentemente da qualidade da vida que portam. É o mesmo teor da a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu respectivo Protocolo Facultativo, que foram ratificados pelo Congresso Nacional em 09/07/2008 pelo decreto legislativo nº 186/2008, cujos artigos são todos de aplicação imediata. Ali, no art. 10, está expressamente estabelecido que os Estados Partes reafirmam que todo ser humano tem o inerente direito à vida. Note-se que a anencefalia não significa ausência de cérebro, mas apenas sua incompletude ou má formação. Se não conseguirmos proteger um cidadãozinho que tem o cérebro mal formado ou incompleto, abrimos a porta para que cada vida humana possa ser questionada e desprotegida com base na adequação ou inadequação a um padrão de perfeição clínica a ser estabelecida ad hoc. Se os anencéfalos não podem viver, podem ser mortos ainda dentro do útero de suas mães, porque não têm um dos seus órgãos corporais perfeitos, rompeu-se o princípio da dignidade da vida humana tout court. O nosso direito, então, desconhecerá o princípio da dignidade da pessoa humana e conhecerá apenas um princípio da qualidade da vida humana: as vidas que não forem conformes a um padrão clinico de perfeição serão descartáveis. Hoje são os nascituros anencéfalos. Em seguida, os velhos doentes em estado terminal, que serão assassinados “por misericórdia”. Seguir-se-ão os abortos dos portadores de anomalias congênitas graves (como já ocorre com os portadores de síndrome de Down nos países em que o aborto está liberado) e aí ninguém mais estará seguro: quem quer que se encontre numa situação de fragilização, sem poder exprimir a própria vontade, seja por imaturidade (no útero materno, por exemplo), seja por doença ou senilidade, e esteja numa situação clínica desconforme aos padrões de saúde tidos como definidores de uma “qualidade de vida” abaixo da qual a morte do ser humano está autorizada em nome da misericórdia com os familiares ou com eventuais cuidadores, estará sujeito a ter o mesmo destino que se quer dar, hoje, aos nascituros anencéfalos. Assim, poderíamos terminar parafraseando a expressão de efeito do filme “Larry Flint”, colocando-a nos lábios de um nascituro anencéfalo condenado à morte por aborto no próprio útero da mãe: “você pode não gostar do que eu sou; mas está pronto para abdicar do direito que me garante viver?”. Ora, o direito que garante a vida do nascituro anencéfalo é o mesmo que, no fim das contas, garante a nossa.

A mesa

(Num jantar, 'A' e 'B', em lados opostos da mesa, fazem suas refeições, quando A, que estava pensativo, repentinamente fala) A: Nada é certeza. B: Como assim? A: Nós não podemos confiar em nada. Não há nenhum conhecimento do qual não se possa duvidar. Esta mesa, por exemplo: nada garante que ela existe, e, se esta mesa existe mesmo, não podemos ter conhecimento imediato dela. Fale as suas características. B: Ela é castanha, retangular, lisa, e dura. A: Não há nenhum cor predominante na mesa. Vemos cores diferentes na mesa quando olhamos de diferentes pontos de vista, e não há razão alguma para considerar que algumas são mais cores que outras. A experiência de cor da mesa também muda para os daltônicos, sob luz artificial, ou a alguém com óculos azuis, e às escuras não haverá qualquer cor. Não podemos dizer que a mesa tem uma cor só pelo nosso ponto de vista; para evitar favoritismos, somos obrigados a negar que, em si, a mesa tenha alguma cor particular qualquer. B: De fato, cor é uma percepção visual, provocada pela excitação de nossos cones. A mesa não tem cor alguma, porque cor não é uma característica, a característica dos objetos é capacidade de refletir determinados comprimentos de onda. Um daltônico para o verde olha para uma mesa amarela e só enxerga vermelho, mas isso não quer dizer que a mesa é vermelha, ela continua refletindo o comprimento de onda equivalente ao amarelo. E eu, que estou aqui nesta cadeira, vejo a mesa de um ponto de vista diferente do seu, que está sentado à minha frente. Os brancos do brilho que vemos estão é lugares diferentes, mas seria contraditório dizer que a mesa tem, ao mesmo tempo, brilho em um lugar pra mim e em outro para você. Um objeto não pode estar em um lugar e em outro ao mesmo tempo. A mesa reflete ondas em todas as direções, e, se você se mover, você verá outro padrão no brilho da mesa, mas era um padrão que já estava aí. Se você sair da sua cadeira e sentar na minha, você não verá mais a mesa do jeito que você está vendo aí, mas do jeito que eu vejo aqui. Não seria a mesa que mudou, mas sim o seu ponto de vista. Você verá o que eu já estou vendo. A mesa não é apenas o que você está vendo, mas você não pode dizer que, por isso, ela não é nada. Ela é o que você vê, mais o que eu vejo, e mais todos os outros pontos de vista. Se não conseguimos ver a mesa de todos os pontos de vista possíveis simultaneamente, o limite é da nossa capacidade, pois a mesa está ali, refletindo luz para todos os lados, potencialmente visível de qualquer ângulo. A: E a textura da mesa? A olho nu, a mesa parece lisa, mas, ao ver pelo microscópio, notamos várias irregularidades em sua superfície. Qual é a mesa real? A primeira coisa que vem à nossa cabeça é que a mesa do microscópio é real, mas isso mudaria com um microscópio mais poderoso. Se não podemos confiar no que vemos a olho nu, por que podemos confiar no que vemos ao microscópio? B: O problema da textura, que, a olho nu, pode parecer lisa, mas que, sob o microscópio, se permite ver as imperfeições, é similar ao da cor. A textura está ali, e não muda quando vista sob o microscópio, o que muda é o detalhamento do que vemos. Não é culpa da mesa se não conseguimos ver suas imperfeições microscópicas a olho nu, mas é culpa da nossa visão, que não consegue ver coisas microscópicas sem o auxílio de um instrumento. Um microscópio cada vez mais potente permite ver uma mesa cada vez mais detalhada, mas a mesa continua sempre a mesma. A: Mas você não pode dizer que esta mesa é retangular. Isso implicaria em dizer que os lados opostos são paralelos e têm o mesmo comprimento, mas parece, do meu ponto de vista, do seu, e de praticamente qualquer um, que ela tem dois ângulos obtusos e dois ângulos agudos, estes dois lados, que supostamente são parelelos, convergem para um ponto distante, e o lado de cá parece maior que o lado daí. B: A forma de uma mesa não pode ser retangular ou circular. Primeiramente, essas são formas, e, como formas, só existem perfeitamente no plano das idéias. Um objeto quadrado nunca será um perfeito quadrado, pois o quadrado é uma ideia. O objeto pode ter os quatro lados iguais quando medido em centímetros, mas, com uma régua milimetrada, pode-se notar diferenças no comprimento dos lados, e um objeto com os quatro lados iguais quando medido em milímetros pode ser imperfeito quando medido em micrômetros, e por aí vai. O segundo problema de reduzir uma mesa a uma forma como o retâgulo ou um circulo é que estas formas geométricas são planas, ao contrário de uma mesa, que é tridimensional. A forma da mesa não é retangular ou circular, mas sim forma de mesa. O que se pode dizer é que a superfície da mesa é circular ou retangular, e isso está certo, e, mesmo que se mude o ângulo de visão, aquela forma está ali. Não se pode reduzir a natureza de uma coisa ao que se vê dela. Uma mesa com a superfície quadrada vista em perspectiva continua tendo os quatro lados de mesmo comprimento, mesmo que ela tenha aparentemente um lado maior que outro para o observador. ('A' se remexe inquieto na cadeira) A: Qual foi mesmo a outra característica que você disse? Dura? É verdade que esta mesa passa sempre uma sensação de dureza, mas a sensação que obtemos depende da pressão que exercemos sobre a mesa. B: A mesa tem a mesma dureza sempre. O que muda a sensação que você sente é uma força chamada 'normal'. Ela é a pressão que você sente no dedo quando o aperta sobre a mesa. Você não pode dizer que a dureza varia com a variação da pressão. A mesa tem essa dureza, e vai continuar com ela independentemente da pressão que se aplique, tanto que ela quebra se você aplicar uma certa pressão, mas não quebra com nenhuma pressão menor, e quebra com qualquer pressão maior. A: Mas isso ainda não prova que a mesa existe. A mesa real, se existe, não é a mesma da qual temos experiência direta pelos sentidos, ela não poderia ser conhecida imediatamente por nós, mas tem que ser uma inferência do que é imediatamente conhecido. B: Parmênides dizia que o não-ser não é, então você não pode dizer que a mesa não existe porque não pode ser diretamente conhecida por nós. Você não pode afirmar que a mesa não existe porque não tem certeza se ela é lisa ou áspera, pois, ao declarar que ela pode ser uma ou outra, você está dizendo que ela tem que ser alguma das duas. E só o ser é. "A mesa é lisa ou áspera" é uma verdade necessária, pois, se ela não for lisa, ela é áspera. Não tem como a mesa existir e não ser nem lisa nem áspera. Se ela é um dos dois, ela existe, mesmo que você não tenha certeza de qual ela é. ('A' volta a comer e nada mais fala) (Pedro Jacobina)

Rendimento

Por que a sociedade moderna valoriza mais as mentes jovens, se os idosos são mais sábios, por terem vivido mais? Já me disseram que é porque a sociedade valoriza a sabedoria em potência dos jovens. Discordo. Se assim fosse, o ser mais valorizado pela sapiência seria o nascituro, pois este tem toda sua sabedoria em ato. Mas não é o que acontece. O gráfico de preço x demanda tem maior renda no ponto médio, não adianta nada ter o preço mais alto e nada vender, da mesma forma que não gera renda quando tem o preço mais baixo. O ponto médio é o equilíbrio entre preço e demanda, e gera a maior renda. Para a nossa sociedade capitalista, analogicamente, a mente sábia, mas que nada mais pode aprender, não tem valor, assim como a mente puramente potencial nada sabe. A mente ideal seria a que possui conhecimento, mas que ainda tem capacidade de aprender. Não é vantagem ser puramente ato em nossa sociedade individualista. Nada adianta ter se especializado em uma área, e perder suas potências nas outras. A sociedade acha que saber um pouco de tudo é melhor que saber muito de algo, por isso ninguém quer abrir uma porta para fechar outras. Chega um ponto no qual, para a sociedade, não vale a pena transformar sua potência em ato, por que isso diminuiria o seu rendimento. O que é falso, tanto do ponto de vista econômico quanto intelectual, pois a especialização é benéfica para ambos os lados. É melhor para a sociedade ter um ótimo físico e um ótimo químico que ter dois cientistas medianos em ambas as ciências. Mas isso só pode ser levado em conta em uma sociedade que não é individualista, pois a especialização pressupõe trocas. Na sociedade individualista, cada um quer fazer tudo, mas acaba não fazendo nada bem. Isso pode até dar uma base, mas a pessoa acaba sendo básica em tudo. Uma sociedade com especializações e trocas, tanto do ponto de vista financeiro quanto intelectual, é mais eficiente. (Pedro Jacobina)

sábado, 7 de abril de 2012

Crime e Desvio - Hackers

A sociologia, enquanto ciência positiva, não pode fazer julgamento de valor. Ela pode definir desvio e dizer que essa noção é difícil de ser definida, mas, ao entrar na discussão so-bre crime, se um fato supostamente desviante é certo ou não e se a prisão de seu ator foi ou não injusta, o discurso social en-trou num campo de investigação que não é o seu, pois, se um criminoso deve ou não ser preso, não é uma questão sociológi-ca, mas um julgamento. A sociologia pode dizer que o desvio é a fuga dos padrões normais de aceitabilidade, mas não pode julgar esses padrões. Ela pode até apresentar uma opinião, con-tanto que apresente a contrária e permaneça imparcial quanto a essas opiniões. Giddens, no seu texto "Crime e Desvio", justifica que "a noção de desviante não é fácil de ser definida", com o exemplo do hacker Mitnick, que é reverenciado por uns e desprezado por outros. Hitler também foi desprezado pelo mundo, mas, até hoje, é reverenciado, pelos neo-nazistas. Hitler não pode ser considerado um desviante, pois há um grupo que o considera um mártir, um herói que morreu por sua causa de melhorar o mundo, eliminando todos os seres sujos e inferiores, como os judeus, que são mentirosos e fracos, e criaram um falso Deus para encobrir essa fraqueza, e como Hitler já advertira, os ju-deus estão cada vez mais no controle da máquina burocrática, e isso está trazendo o inferno no mundo, nas palavras do neona-zista Steve, no filme "180 Movie". Foi encurralado e preferiu morrer fiel à sua causa a se render. Mitnick diz que "Hacker é um termo de honra e respei-to. É um termo que descreve uma habilidade, e não uma ativi-dade, da mesma forma que a palavra 'médico'." 'Médico' des-creve uma atividade. O médico deve ser formado em medicina e, ainda que eventualmente tenha menos habilidade que outrem que não fez o curso de medicina, ele não deixa de ser médico por isso, e a pessoa que eventualmente tenha mais habilidades que o médico não vira médico por causa disso. Analogicamen-te, ter o conhecimento teórico de hackeamento não torna o in-divíduo um hacker. Programadores têm essa habilidade, mas e-fetivamente pôr essas habilidades em prática é o que caracteri-za o hacker. Só porque alguém tem uma habilidade, não quer dizer que a pessoa exerça essa atividade, e esse conceitos são, de certa forma, próximos, mas distintos. Policiais têm a habili-dade de arrombamento, às vezes até mais habilidade que os ar-rombadores, mas não são como estes, pois não exercem essa a-tividade. Um conhecido contou-me uma vez que ele estava com a polícia na casa de um político, buscando dinheiro de cor-rupção, e, ao se depararem com uma gaveta trancada, o político alegou: "Este armário era de minha filha, só ela possui a chave, mas já deve tê-la perdido. Esse armário está trancado há anos." O policial sacou uma gazua e logo abriu o armário, revelando o dinheiro. No caso dos hackers, o que acontece é que empresas podem contratá-los para que que eles trabalhem como seguran-ças, dessa mesma forma que pode ser concedido perdão judici-al a um bandido que traia a quadrilha e ajude a polícia. "Os hackers se antecipam em ressaltar que a maior par-te de suas atividades não é criminosa. Interessam-se, sim, pri-meiramente, em explorar os limites da tecnologia da computa-ção, tentando revelar furos e descobrir até que ponto é possíel penetrar em outros sistemas de computadores. Uma vez desco-bertas as falhas, a "ética hacker" exige que as informações se-jam compartilhadas publicamente." Seria mais ou menos como ver um pequeno furo no muro do seu vizinho, pegar uma broca, abrir um rombo e então anunciar com um megafone à frente da casa que há um rombo no muro. É diferente de um empregado da casa reparar um buraco no muro e avisar o seu patrão, para que um ladrão não entre pelo buraco no meio da noite. Mitnick ainda diz "No computador, me sinto como al-guém que pega um carro para uma corrida em alta velocidade. Não me considero um ladrão." Não há problema algum em cor-rer num autódromo; correr na rua, porém, é crime, assim como roubar. Mitnick dirige seu computador como um corredor pro-fissional num circuito de corrida ou como um adolescente fa-zendo um "pega" na rua? Giddens ainda diz no seu texto que "Quando iniciamos o estudo do comportamento desviante, devemos considerar quais as regras que as pessoas estão observando e quais estão infringindo. [...] Até mesmo aqueles indivíduos que possam pa-recer completamente fora do terreno da sociedade respeitável [...] estão provavelmente seguindo regras dos grupos aos quais pertencem. [...] (O estudo sobre o crime e o desvio) Também nos ajuda a observar que as pessoas cujo comportamente possa parecer incompreensível ou estranho podem ser vistas como se-res racionais a partir do momento em que compreendemos o motivo que as leva a agirem dessa forma." Um homicídio acon-tece num vilarejo, o cadáver de uma menina de 9 anos é encon-trado violentado num riacho. As investigações levam à prisão de Fulano, que, em seu depoimento, alega que fazia parte de u-ma seita demoníaca que tinha, como rito de iniciação, violentar e depois assassinar uma jovem virgem. O juiz absolve Fulano, e nenhum habitante questiona esse julgamento, pois aquele comportamento estranho e incompreensível daquele indivíduo que parecia completamente fora do terreno da sociedade res-peitável era completamente razoável, depois que as pessoas compreenderam que o motivo que o levou a agir dessa forma e-ra apenas o seguimento de uma regra do grupo ao qual ele per-tencia. O comportamento do hacker Mitnick estava de acordo com as regras do grupo ao qual ele pertencia. Um rapaz com "roupas não-convencionais" tem um comportamento desviante? Depende do lugar onde ele está. Se ele estiver andando na rua, não está sendo desviante, pois não há nenhuma regra que diga que ele não pode andar assim. Mas, se ele for um funcionário público, há uma série de regras que dizem como ele deve se vestir, e alegar que ele se veste com "roupas não-convencio-nais" pois é de uma tribo qualquer não funciona neste caso, pois ele deve agir de acordo com as regras do seu grupo (sua tribo) quando estiver com ele, e deve agir de acordo com as re-gras do outro grupo (seu trabalho) quando estiver trabalhando. Da mesma forma, se o comportamento de Mitnick é aceitável no seu grupo, então ele só pode agir assim no meio do seu gru-po, ou seja, ele só poderia hackear os computadores dos outros hackers, pois independentemente de esse comportamento ser a-ceito ou não no meio hacker, não é aceito fora dele. "O desvio e o crime não são sinônimos, [...] O conceito de desvio é bem mais amplo do que o de crime." De fato, há i-números comportamentos desviantes que não são criminosos, como o do rapaz que veste "roupas não-convencionais". O comportamento hacker, no entanto, além de desviante é crimi-noso; desviante porque, independentemente de os outros ha-ckers aprovarem este comportamento, o grupo maior, a socie-dade como um todo, não apoia; criminoso porque está previsto no código penal, e Mitnick foi preso justamente por seu com-portamento que, além de desviante, é criminoso. O autor cita o grupo Hare Krishna, que possui um comportamento desviante. Sem duvida o comportamente desse grupo é estranho a um nú-mero significativo de pessoas, mas não é, de forma alguma, cri-minoso, ao contrário do dos hackers. (Pedro Jacobina)

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Andrés Torres Queiruga notificado pela Congregação para a Doutrina da Fé espanhola

O teólogo galego Andrés Torres Queiruga, com seu "cristianismo adaptado ao pensamento contemporâneo", acaba de ser definitivamente notificado pela Conferência Episcopal Espanhola. Entre outras coisas, Queiruga nega a historicidade da ressurreição, o que, por via de consequência, nega a própria substância do cristianismo. Se Cristo não ressuscitou concreta e realmente, vã é a nossa fé, já nos advertiu São Paulo ( 1Cor 15, 14). Transcrevo um trecho do texto da notificação, em tradução livre: "(...) Isto nos leva à questão central, que não é outra senão a do conteúdo da fé na ressurreição. Para Torres Queiruga o acontecimento da ressurreição é uma ação de Deus pela qual ele impede que Jesus seja anulado pela morte. A fé na ressurreição não é aceitar a verdade de um acontecimento histórico do qual existem manifestações hisóricamente comprovadas, mas apenas ter a convicção de que Jesus está vivo, em um modo de vida na qual há ausência de corporeidade. Para ele, a Ressurreição do corpo não é um elemento essencial da fé pascal. Na verdade, no pensamento de Torres Queiruga, o lógico seria que o corpo não houvesse ressuscitado. Tampouco as aparições são acontecimentos essenciais para a fé na ressurreição. Para ele, são simplesmente “algum tipo de experiência singular”. O problema, portanto, não está somente em que não aceite as aparições como «manifestações historicamente comprovadas» da Resurreição, mas que para ele tais acontecimentos não poderiam ocorrer. Seu modo de explicar a fé na Resurreição de Cristo não inclui nem a ressurreição do corpo nem as aparições. Estas afirmações do Professor Torres Queiruga modificam substancialmente a compreensão que a fé da Igreja mantém a propósito da Resurreição. O fato de que a ressurreição do Senhor não seja uma simples revivificação de um cadáver não conduz necessariamente a que seja algo alheio à história e sem possibilidade de ser verificado por testemunhos de uma maneira objetiva. O Catecismo da Igreja Católica, que deve ser considerado «como regra segura para o ensino da fé», registra de uma maneira muito precisa como se deve entender a ressurreição, as aparições e o sepulcro vazio: «Ante estes testemunhos é impossível interpretar a ressurreição de Cristo fora da ordem física, e não reconhecê-la como um evento histórico". «Acontecimento histórico demonstrável pelo sinal do sepulcro vazio e pela realidade do encontro dos apóstolos com Cristo ressuscitado, nem por isto a Resurreição pertence menos ao centro do mistério da fé naquilo que transcende e sobrepassa a História». Conceber a ressurreição de outra maneira pode conduzir a uma certa forma de gnosticismo." O texto integral da condenação, em espanhol, está no seguinte link: http://www.conferenciaepiscopal.es/index.php/actividades-noticias-doctrina/2682-notificaciones-sobre-algunas-obras-del-prof-andres-torres-queiruga.html