terça-feira, 8 de maio de 2012

Pessoa humana e liberdade

A questão, quando se trata de falar de pessoa, é que sempre se faz um corte metodológico a partir dos nossos próprios preconceitos, pré-compreensões. O problema é que não está claro, não está de modo nenhum demonstrado, que aquilo que fica negligenciado pela própria natureza do método é, de fato, negligenciável, nos ensina León Brunschvicg. A pessoa humana sempre ultrapassa qualquer discurso que se possa construir sobre ela. A pessoa humana sempre ultrapassa qualquer construção jurídica que se possa fazer sobre ela. Vale lembrar sempre Pascal: o homem ultrapassa infinitamente o homem. Falar de dignidade da pessoa humana nos remete logo a Kant, com sua noção de pessoa como fim, e de fato é uma noção basilar para a nossa discussão. Na verdade, Kant sistematizou com muita felicidade, embora com os limites do dualismo da sua filosofia, a questão da pessoa humana. Em todo caso, dificilmente nós vamos muito além de Kant, quando discutimos este tema. Mas deveríamos, e é o que eu vou tentar indicar aqui. O fato é que a modernidade parece iniciar-se, segundo os mais abalizados filósofos contemporâneos, com o cogito de Descartes. Ali, a realidade passa a ter fundamento num ato de autorreconhecimento, que funda a realidade a partir do pensamento. Se o meu pensamento é fundamento do meu ser, partindo do meu pensamento eu encontro fundamento para o ser de Deus e a existência de um suposto mundo exterior a mim mesmo. É uma tremenda revolução com relação à visão de mundo anterior, que colocava no Bem (como Platão), no Uno (como Plotino) ou no Ser (como Tomás) o fundamento da realidade. Na verdade pode-se ir um pouco mais atrás. Um outro grande homem do final do século XIII (início do século XIV, o monge franciscano Guilherme de Ockham (conhecido em citado entre nós por sua famosa “navalha de Ockham”) já havia plantado profundamente as sementes do dualismo moderno, com seu nominalismo. Talvez, como sabemos,a discussão sobre os universais tenha sido a discussão mais aguda na idade média (e esta discussão não parece ter terminado até hoje, mas apenas ter perdido seu apelo). Platão, em seu hiperrealismo, defendeu a existência efetiva dos universais no reino das ideias. Aristóteles negou a existência dos universais, senão como essências, formas expressas nos indivíduos com que nos deparamos todo dia, e dos quais abstraímos por meio da cognição intelectual. Tomás segue Aristóteles, reconhecendo a concretude dos seres individuais e a realidade dos universais como abstrações, no entanto com correspondência concreta nas próprias coisas e realidade na mente divina. Ockham defendeu que Deus é suprema onipotência, e ele não poderia ser constrangido, em sua onipotência, nem sequer pelos nomes, vale dizer, pelos universais: ao criar a segunda maçã, a onipotência divina não estaria limitada pela noção de espécie a fazê-la, de algum modo, relacionada à primeira. Deus permanece livre e soberano em cada ato de criação, e portanto só cria indivíduos. Nós e que criamos os universais, os nomes, como entes de razão sem correspondência concreta nas coisas, para fins de conhecimento e domínio sobre a natureza. Portanto, foi buscando defender a suprema liberdade de Deus quando criava cada coisa individual que Ockam nega a realidade dos universais. E, ao fazê-lo, nega também a relação entre a lei e a inteligibilidade: se a lei era, até então, vista em algum grau como uma participação humana na sabedoria divina – esta era a relação entre a chamada lei natural e a lei positiva – Ockam, visando dar maior glória a Deus, nega que a vontade onipotente de Deus pudesse estar vinculada de algum modo à sua própria inteligência, ou seja, que a inteligibilidade pudesse, de algum modo, constranger a vontade, em deus. O que Deus determina, ele não o faz porque é razoável, mas porque, em sua vontade onipotente, ele o quer, sem que precise haver uma razão para isto. Nós não amamos a Deus porque ele é intrinsecamente amável, mas porque ele, em seu Poder infinito, nos ordena que nós o amemos, e daí decorre nosso dever de amá-lo. Se Deus nos ordenasse, por outro lado, e sem razão que nos fosse discernível, que nós o odiássemos, estaríamos igualmente obrigados a fazê-lo. Esta é uma visão muito próxima à visão muçulmana, inclusive, mas muito distante da tradicional visão cristã. Ele foi muito mais influente do que pode parecer, no campo do direito: não é à toa que nosso direito contemporâneo fundamenta-se muito mais na promulgação, na vontade e no poder de quem o positiva, do que na sabedoria intrínseca dos seus mandamentos, como era nas culturas antigas e na medieval. Não é à toa que o pensamento de Ockham seria condenado pela Igreja como herético: de fato, ele colocou Deus na condição de adversário-mor da liberdade humana: se Deus é onipotente assim, se sua vontade é um capricho infinito, então em última instância nós não somos livres, já que qualquer ato de vontade nossa seria uma imediata restrição à onipotência divina. Eis aí Deus colocado como adversário da liberdade humana: a onipotência divina seria uma contradição à nossa liberdade: Deus deve ser eliminado. E é esta a postura que muitas vezes encontramos, ainda hoje, em nosso mundo jurídico. Mas certamente este Deus adversário do mundo, que um dia Millôr Fernandes classificou não como onipotente, mas como “prepotente”, não é o Deus cristão, o Deus Pai de Jesus. Mas isto é um assunto para outro momento.(Paulo Jacobina)